domingo, 24 de setembro de 2017

"O Vendedor de Sacis e Outras Lorotas" e "Alquimistas - Inventores de Inventos": Quando a criança não é mera espectadora no Teatro Infantil.

por Carmem Toledo

A satisfação em assistir a uma boa montagem teatral é sempre algo buscado por aqueles que valorizam a arte.
Quando esse prazer é atingido, costuma ser usufruído com uma empolgação inspiradora, muito próxima ao conceito aristotélico de "catarse" - a purificação de emoções experimentada pelos espectadores das tragédias gregas.
No entanto, as oportunidades de identificação com os atos representados não acontecem somente através do estarrecimento causado pela ação trágica. Enquanto os sentimentos de piedade e medo (relacionados àquilo que se nos apresenta como sublime) nos levam a uma purgação, nós também encontramos as vias de reconhecimento de nossa humanidade nas representações que nos inspiram a paz - são estas que costumamos chamar de "belas": a harmonia, a natureza e sua simetria, tudo aquilo que confirma a vida aos nossos olhos. Segundo o filósofo Immanuel Kant, estas duas reações - o temor e o estarrecimento causados pelo que chamamos de "sublime" e a paz e o amor despertados por aquilo a que damos o nome de "belo" - encerram a contemplação desinteressada que é essencial na experiência estética. Como se pode ver, desde os gregos, passando pelos modernos até os dias atuais, a formação do mundo que conhecemos está diretamente relacionada aos nossos juízos de gosto, ao senso do belo e, portanto, a todas as formas de representação (bela ou sublime) de nossa humanidade, expressa eficazmente pela arte.

Desde a infância, aprendemos a conviver, apreciar e fazer arte. Trata-se de uma via de comunicação indispensável em todas as sociedades. A criança que desenha, pinta ou canta está utilizando esta forma de expressão, ainda que não tenha plena consciência do que isso representa em seu contexto sócio-cultural ou desconheça os conceitos por trás de cada manifestação. Mesmo assim, os pequenos se espantam quando um contador de histórias lhes conta uma lenda assustadora, acompanhando os sofrimentos do herói e aprendendo com a piedade que já sentem por ele, mesmo em tenra idade e, muito provavelmente, sem jamais terem ouvido a palavra "catarse". Do mesmo modo, riem, sentem-se atraídas e atentam para o que se lhes apresenta como belo, ainda que não tenham qualquer noção de harmonia.
Por isso, a arte sempre tocou as crianças, independentemente de suas produções estarem voltadas especificamente para elas ou não (não me aprofundarei nisso, mas recomendo a leitura da obra do historiador Philippe Ariès - especialmente, "História Social da Criança e da Família" - aos interessados em uma abordagem histórica do tratamento dado às crianças).

Duas peças infantis que estão em cartaz atualmente ilustram bem os parágrafos acima. São elas: "O Vendedor de Sacis e Outras Lorotas" (escrito e interpretado pelo ator Vicentini Gomez e dirigido por Maximiliana Reis) e "Alquimistas - Inventores de Inventos" (escrito por Vicentini Gomez, estrelado por Pedro Paulo Vicentini, Camila Doná e Pedro Daher, sob a direção de Carlos Meceni). Inclusive, vem a calhar que estas montagens sejam realizadas no mesmo espaço (Teatro Ruth Escobar, em São Paulo), uma logo após a outra (a primeira, às 16h e a segunda, às 17h30): Vicentini Gomez, autor de ambas, soube traduzir fantasticamente as imagens que povoam o imaginário infantil, bebendo das fontes do folclore brasileiro e dos personagens da Commedia Dell'Arte, respectivamente, para escrever cada uma delas.
Em "O Vendedor de Sacis e Outras Lorotas", Vicentini prende a atenção dos pequenos em um espetáculo solo, proporcionando experiências marcantes por meio de histórias que fazem parte de nossa formação cultural - em outras palavras, de nossa brasilidade. É realmente agradável observar as reações de susto, medo, expressas pelas boquinhas abertas e inquietudes nas poltronas. Feliz da criança que tem a oportunidade de conhecer o Saci, as histórias da aldeia que não tinha noite, dos índios que não tinham sono... Não seriam esses instantes momentos únicos de "purificação"?
Na peça "Alquimistas - Inventores de Inventos", por sua vez, Vicentini proporciona uma apresentação de alguns personagens de um importante gênero surgido na Itália que influenciou - e segue exercendo influência - no teatro ocidental: a Commedia Dell'Arte. Na montagem em cartaz, é possível reconhecer traços de personalidade de figuras como o Dottore (intelectual "baforento" - o "sabe-tudo" que pouco sabe), bem como a agilidade da Colombina ou as trapalhadas do Arlecchino. São tipificações que foram de tal forma incorporadas pelo nosso teatro cômico, que uma observação mais atenta revela características essenciais de seus personagens em várias produções (sobre isso, recomendo a leitura de "Iniciação ao Teatro", do teatrólogo Sábato Magaldi, que nos deixou recentemente). Além disso, os traços morais são facilmente identificáveis, o que conduz a uma reflexão sobre atitudes e valores. Pedro Paulo Vicentini, Camila Doná e Pedro Daher assumem esses papéis com desenvoltura, passando com sucesso a essência de cada personagem às crianças. Outro detalhe que merece observação é a química entre os atores - algo que aumenta a beleza do texto.

O teatro infantil brasileiro é de uma riqueza ímpar. Temos textos, autores e grupos consagrados, como Maria Clara Machado (O Tablado) e Ilo Krugli (Ventoforte). Vicentini Gomez, com seus textos e montagens, confirma a seriedade e importância de nosso teatro infantil, valorizando e respeitando a criança, não apenas como espectadora, mas como interagente, criadora e - quem sabe? - futuro artista.

Carmem Toledo
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