A entrevista a seguir foi realizada em março/2008.
Resgatando a obra de grandes artistas, como Aracy Côrtes, Pepa Delgado, Carmen Miranda, Jesy Barbosa, entre muitas outras pérolas de nossa cultura, Marcelo Bonavides explora um passado cheio de riquezas musicais que jamais podem ser esquecidas.
Marcelo Bonavides com o acervo de Pepa Delgado |
Carmem: Qual a época que você privilegia em suas pesquisas?
Marcelo: Eu enfoco o período de 1859 até o começo da década de 1940.
Como pesquiso Teatro de Revista, Música Popular Brasileira, escolhi o ano do surgimento das Revistas Musicais em nosso país (1859) para dar início à pesquisa. Vou me dedicando, principalmente, ao resgate das atrizes/cantoras desse período que hoje, estão esquecidas. Minha pesquisa vai até onde algumas delas encerraram suas carreiras, geralmente no fim da década de 1930 e começo dos anos 40. Procuro conhecer os anos posteriores para melhor saber o que aconteceu nesse cenário; sem contar algumas artistas, como Zaíra Cavalcanti, que continuaram suas carreiras nos anos 50 e Aracy Côrtes, que faria um rápido retorno na década de 60.
Carmem: Você já desejou ter vivido em outra época?
Marcelo: Sim, queria ter vivido nesse período. Acho que seria muito bom poder vivenciar essas melodias e tendências como o último “grito” da moda.
Carmem: Qual a principal diferença que você vê entre as artistas que você pesquisa e as artistas de hoje?
Marcelo: Acho que há um interesse em conhecer o que foi feito no passado. Cantoras como Marisa Monte fazem pesquisa e resgatam antigas composições, colocando-as na mídia, como prova de que elas sempre vão estar em moda.
Talvez hoje não exista aquele frenesi em torno das artistas como havia no passado. Alguns exemplos que posso citar: a atriz Aurélia Delorme era sempre aclamada em cena aberta no final do século XIX e recebeu de seus fãs um jornal em sua homenagem, o “Delormista”. Havia um grande entusiasmo na platéia quando Aracy Côrtes cantava seus sambas nos palcos da Praça Tiradentes, nos anos 20/30, chegando a repetir o samba “Jura...!” de Sinhô (José Barbosa da Silva) sete vezes em sua noite de lançamento, em 1928, de acordo com depoimentos da época. Temos Carmen e Aurora Miranda que levavam multidões às suas apresentações pelo país, levando o público ao delírio. Sem contar as famosas Eugênia Câmara e Adelaide do Amaral que, em meados do século XIX tinham os teatros onde se apresentavam transformados em campos de batalha de versos, onde havia a divisão de dois partidos representando cada uma. Seus líderes e maiores fãs eram, respectivamente, os poetas Castro Alves e Tobias Barreto.
Carmem: Você sente falta de algo na arte atual?
Marcelo: Acho que faz falta aquele sucesso musical que marca bem uma época. Não falo de sucesso instantâneo que fica em cartaz nas rádios e vendem inúmeros cds. Mas uma nova “Aquarela do Brasil”, um novo “Boas Festas”, “Ai, Yoyô”, “Lábios que Beijei”... Acho que seria bom sentir a emoção de termos um novo clássico com o mesmo impacto dessas músicas.
Sinto que há um termo que classifica a música como Popular, mas as classes C e D não têm acesso a essas músicas e intérpretes. No passado essas mesmas pessoas podiam apreciar compositores do nível de Ary Barroso e Assis Valente. Hoje, com o acesso aos bons compositores dificultado, essas pessoas vão escutar músicas de qualidade duvidosa.
Carmem: Você acha que há pesquisas o bastante sobre a música antiga? Qual a opinião de outros pesquisadores sobre isso?
Marcelo: Não. Digo isso porque vemos algumas produções, seja em TV, teatro ou mesmo na música e acho que há muito a ser (re)conhecido. Existem muitas composições extraordinárias, intérpretes incríveis, mas que, devido à nossa pouca memória, permanecem no ostracismo. Quando se resgatam alguns artistas, geralmente são os mesmos. Isso é louvável, pois eles têm seu valor e merecem todo o reconhecimento. Mas, e os outros? Por que não há uma divulgação de nomes como Zaíra de Oliveira, Jesy Barbosa, Stefana de Macedo, Januário de Oliveira ou Gastão Formenti?
Carmem: Há respeito quanto às fontes da pesquisa (fotos, documentos, cartas, gravações)? Você já teve material roubado? Conheceu mais algum pesquisador que teve seu material roubado também?
Marcelo: Sim, e isso é uma prática mais comum do que se imagina. Muitas pessoas copiam nosso material e não colocam os devidos créditos quando resolvem publicar essas mesmas informações. Tenho uma amiga que também é pesquisadora em SP e teve fotos raras roubadas e em outra ocasião, boa parte de sua monografia copiada sem que fosse registrada a fonte de pesquisa.
Na Internet há fotos que pertencem a meu acervo e parte de artigos que escrevi onde meu nome não aparece. Poucas são as pessoas que colocam o crédito das pesquisas.
Um pouco do acervo de Pepa Delgado |
Marcelo: Eu sempre ligava para Aurora Miranda por ocasião de seus aniversários ou da Carmen Miranda, sua irmã. Ela era muito simpática e atenciosa. Ligava também para Elisa Coelho, que gravou "No Rancho Fundo" em 1931, o primeiro registro dessa música. Elisinha, como também é conhecida, me emocionava quando cantava para mim, aos 91 anos, seus sucessos de 1930. Há 3 anos conheci pessoalmente no Rio de Janeiro a cantora Olga Praguer Coelho que iniciou sua carreira por volta de 1928. Ela é uma das mais famosas cantoras/pesquisadoras de nosso folclore, ao lado de Elsie Houston, Stefana de Macedo, Helena de Magalhães Castro, Stelinha Egg, Dilu Melo e Inesita Barroso. Passei uma tarde em sua casa e foi muito emocionante, ela estava com 97 anos aproximadamente; embora fraquinha, ainda mantinha um olhar muito vivo e era atenta ao que conversávamos. Cantou para mim alguma música e falou frases em francês, alemão e inglês, demonstrando como ainda guardava seus antigos conhecimentos nesses idiomas. Ela fez uma carreira brilhante na Europa e nos EUA, chegando a filmar em Portugal o filme "Varanda dos Rouxinóis", em 1936, do qual o sambista Moreira da Silva também participava. Eu conversava muito com Olga ao telefone, durante horas... Esta notável artista me dava verdadeiras aulas sobre cultura e relatos sobre sua vida e de seus colegas, como na ocasião em que defendeu a cantora e pesquisadora Helena de Magalhães Castro das críticas de Oscar Guanabarino, conhecido músico, dramaturgo, crítico musical e de arte da primeira metade do século XX, que afirmou que a jovem cantora não possuía voz.
Outra experiência marcante foi quando conheci a família de Pepa Delgado. Pepa foi uma das primeiras mulheres a gravar disco no Brasil e um nome de grande sucesso no teatro de Revista, no período de 1902 a 1924. Eu falava sempre com seu filho. Pouco depois que ele faleceu, fui ao Rio e conheci a neta e o bisneto de Pepa. Recebi um material valiosíssimo, composto de discos autografados pela artista, fotos que abrangem o período de 1895 a 1935, um diário com anotações...Esse material faz parte de meu acervo e estará presente no livro que estou escrevendo sobre esta notável artista. Foi um fato curioso quando comecei a manter contato com sua família, pois eles não entendiam como um adolescente da década de 1990 poderia gostar de uma cantora que viveu seu apogeu na década de 1900. Com o tempo, ficamos muito amigos.
Também conversei algumas vezes, via fone, com Pedro Celestino, irmão de Vicente, com o compositor Braguinha, com D. Ilka, esposa do grande Almirante. Também conversei com a cantora Laís Marival, que fez sucesso nos anos 30, e havia se afastado da carreira. Cheguei a conversar rapidamente com Dercy Gonçalves, que me concedeu seu autógrafo em 1991, quando esteve em Fortaleza. Com ela, obtive informações sobre Zaíra Cavalcanti, que trabalhou algum tempo na Companhia Teatral de Dercy.
No final dos anos 80 e início da década de 90 eu participava da reunião de pesquisadores que acontecia na Praça do Ferreira, lugar histórico de Fortaleza. Essas reuniões eram compostas por senhores de mais de 60. Eu tinha por volta de 12/ 13 anos na época e, no começo, muitos não entendiam o que eu fazia lá e ficavam impressionados quando sabiam que enquanto eles apreciavam a música dos anos 40 eu estava adorando ouvir cantoras dos anos 10. Nessas reuniões, tive o prazer de conhecer o "cowboy" Bob Nelson, cantor de prestígio nos anos 40 e 50. Embora pesquisasse as décadas anteriores, sempre procurei conhecer a música e os intérpretes dessa época mais "jovem", guardando boa impressão e estima por vários deles. Bob me presenteou com um autógrafo estilizado, onde desenhou seu chapéu e me fez uma bela dedicatória.
Em São Paulo, onde passei a morar em 2000, passei a freqüentar o Páteo do Colégio, um marco histórico da cidade. Lá se realiza toda terça-feira uma reunião de pesquisadores e amantes da MPB do passado. Para minha surpresa eu não era mais o jovem da turma. Conheci pessoas de 15 anos e várias com 20 e poucos anos pesquisando e gostando da música dos anos 20/30. Eu passava a ser o "tio" desse grupo mais jovem. Fico feliz com isso, pois, quando comecei, em 1988, eu era o único e isso fazia com que muitas pessoas tivessem preconceito com o fato de um pré-adolescente gostar de músicas muito antigas. Hoje, isso já é bem aceito e até incentivado.
Carmem: O que você tem a dizer para os artistas de hoje?
Marcelo: Que procurem conhecer o nosso passado cultural e seus artistas que hoje são pouco conhecidos. Com certeza ficarão surpresos com as descobertas!
Entrevista realizada por e-mail por Carmem Toledo em março/2008
Fotos: Acervo pessoal de Marcelo Bonavides
Mais informações sobre Marcelo Bonavides podem ser encontradas em http://bonavides75.blogspot.com/ ou através do e-mail bonavides75@gmail.com