por Carmem Toledo
Já falei a respeito do
programa televisivo “TERRADOIS”, produzido pela TV Cultura.
Depois de assistir ao episódio de ontem - “Aquele que não quer
ver” -, resolvi escrever novamente, motivada pelo tema debatido.
Hoje, manipula-se o que sempre concebemos como natural, imprevisível
e inelegível: embriões são modificados, fazendo com que nossas
escolhas sejam, ao mesmo tempo, expressões de liberdade e de
imposição. Esta seria uma das realidades de “TERRADOIS”, ou da
pós-modernidade. No texto abaixo, vou um pouco mais além e tento
analisar outras questões que me vieram à mente enquanto assistia ao
programa.
Falar sobre a
pós-modernidade implica a abordagem de temas éticos – matérias
que se fazem sempre presentes na investigação de tudo que diz
respeito ao ser humano inserido em determinada realidade social. A
partir de valores e ideais relacionados à conduta, é construída a
base teórica que tenta orientar a boa convivência em sociedade.
Esta é a chamada “ética”, a reflexão sobre os princípios que
suscitam ou norteiam o comportamento humano. Trata-se de um assunto
muito vasto, presente em filosofia, história, antropologia e outras
áreas de estudos. Os sofistas – apesar de não possuírem um
sistema ético - intencionavam transmitir ensinamentos sobre a melhor
maneira de lidar com assuntos materiais, como a administração de
negócios públicos. Sócrates foi o primeiro a instituir uma máxima
positiva de conduta segundo a qual a virtude é o conhecimento do
bem. Aristóteles colocava a virtude (areté) como a base da
felicidade individual e coletiva (eudaimonia). Desde os antigos até
nossos dias, a ética se faz presente, traduzindo os princípios
universais das opiniões morais sobre a prática social – algo
estreitamente ligado à cultura, a visões de mundo produzidas pela
percepção individual e pela educação recebida.
A dramaturgia do
programa de ontem (escrita por Edu Salemi) resumiu perfeitamente essa
via de mão dupla, na minha opinião. Os anseios do pai (interpretado
por Marco Antônio Pâmio) eram de igualdade em relação à filha
(representada por Isabella Vergal). A partir de uma discussão sobre
a decisão tomada junto à esposa (vivida por Martha Nowill), de
alterar o embrião para que a criança nascesse cega como os pais,
produziu-se um conflito: Aquele bebê cresceu e então, ouvia toda a
conversa, tornando-se ciente de uma escolha da qual não participou e
que traria consequências para toda sua vida. É claro que os pais
sempre querem o melhor para seus filhos. Na ficção encenada no
programa, não era diferente.
Assim que comecei a
assistir à cena, lembrei-me do livro de Andrew Solomon, “Longe da
Árvore”. O próprio título é bastante expressivo, fazendo
referência à famosa máxima: “O fruto nunca cai longe da árvore”.
Esta frase é alicerçada sobre algo chamado “identidade vertical”
- quando a criança se assemelha a seus progenitores. No entanto, há
frutos que caem “longe da árvore” - quando nasce um bebê com
alguma deficiência, revela-se um prodígio, ou mesmo nos casos de
homossexualidade e transexualidade. Geralmente, são condições
estranhas às famílias, que tendem a fazer projetos que reforçam a
verticalidade e rechaçam a diferença, quando esperam um bebê. E é
justamente esta diferença que reúne esses “frutos isolados”,
produzindo uma outra identidade: a horizontal.
Na cena de “TERRADOIS”,
o comportamento do pai, segundo minha interpretação, conseguiu unir
a verticalidade e a horizontalidade das relações humanas. Ele e a
esposa eram cegos e o desejo de ter um filho igual – que “caísse
perto da árvore” - era grande. Graças aos avanços científicos,
a escolha sobre o embrião tornou-se uma realidade. Nascendo cega, a
criança seria um “espelho” dos pais, reafirmando a identidade
vertical. Ao mesmo tempo, reforçaria a adequação da família na
comunidade cega – algo que também se fez presente no
relacionamento afetivo da filha, que também fora manipulado pelo pai
-, fortalecendo a identidade horizontal.
Algo bastante parecido
acontece nos casos de surdez. Oliver Sacks fez uma excelente
investigação sobre a comunidade surda e seus estudos, somados à
sua experiência, geraram o livro “Vendo Vozes”. Os surdos têm
uma língua própria - de sinais. É interessante notar que a língua,
além de alterar o desenvolvimento cerebral e ser a principal via de
expressão do “eu”, é algo social, o que faz dela um dos
principais elementos agrupadores, formadores de comunidades e,
portanto, de culturas. Sacks escreve, com propriedade:
“A língua de sinais
é para os surdos uma adaptação única a um outro mundo sensorial;
mas é também, e igualmente, uma corporificação da identidade
pessoal e cultural dessas pessoas. Pois na língua de um povo,
observa Herder, 'reside toda a sua esfera de pensamento, sua
tradição, história, religião e base da vida, todo o seu coração
e sua alma.' Isso vale especialmente para a língua de sinais, porque
ela é a voz – não só biológica mas cultural, e impossível de
silenciar – dos surdos.” (SACKS, Vendo Vozes, trad. de Laura
Teixeira Motta, Companhia das Letras, p. 105).
Existe um debate ético
baseado nisso, sobre o implante coclear. Solomon afirma:
“Ele foi saudado
pelos progenitores como uma cura milagrosa para um defeito terrível
e foi lamentado pela comunidade surda como se fosse um ataque
genocida a uma comunidade vibrante.”
Prosseguindo, o autor
entra na questão abordada pelo programa:
“Desde então, ambos
os lados moderaram a retórica, mas a questão é complicada pelo
fato de que os implantes cocleares se mostram mais eficazes quando
são feitos precocemente – em bebês, de preferência – e, assim,
a decisão é muitas vezes tomada pelos pais antes que a criança
possa ter ou expressar uma opinião informada”. (SOLOMON, “Longe
da Árvore”, trad. de Donaldson M. Garschagen, Luiz A. De Araújo e
Pedro Maia Soares, Companhia das Letras, pp. 13-14).
Como se vê, trata-se
de uma questão muito mais cultural do que patológica e, portanto,
ética. Na minha opinião, tanto na ficção encenada em “TERRADOIS”,
como na realidade estudada por Andrew Solomon e Oliver Sacks, o que
está em jogo são a prática em comunidade e nossa liberdade de
escolha como algo que implica ultrapassar e, ao mesmo tempo, impor
limites. Um dos motes do programa (dito pelo psicanalista Jorge
Forbes) é “Podemos mais do que queremos”. De fato, ainda
precisamos conciliar nosso “poder” com nossos desejos, que ainda
estão atrelados a valores que seguem em constante modificação. Aí
está a ética que criamos e à qual nos submetemos – mas de que
nem sempre temos plena consciência. Cada vez mais, a
responsabilidade se mostra como o cerne da moral contemporânea.
Quanto mais podemos, mais nos tornamos responsáveis. A vida tem
apresentado desdobramentos, possibilidades que parecem infinitas, mas
uma coisa não muda: sua preciosidade. Ela ainda pulsa de maneira
animal, lembrando-nos que somos mortais, habitantes de um mesmo
planeta e, portanto, responsáveis uns pelos outros – e não há
“mundo virtual” que possa negar isso (ao menos, por enquanto).
Carmem Toledo
Seguem os vídeos correspondentes ao programa de ontem, que inspirou este artigo: