quinta-feira, 27 de abril de 2017

Ressignificações: Banda Vexame, música brasileira e meu amor pela arte

por Carmem Toledo

Hoje, resolvi compartilhar com os leitores alguns detalhes de meu amor às artes - mais especificamente, como se deu esta descoberta. Para isso, falarei sobre ressignificações na música brasileira e nas escolhas profissionais. Como ambas se relacionam? Começarei falando sobre uma banda que simplesmente adoro e chegarei ao ponto em comum.

A Banda Vexame é um grupo musical formado pelos grandes Marcelo Papini, Carlos Pazetto, Fernando Salem, Carneiro Sândalo, Jean Arnoult, André Gordon, Reinaldo Chulapa, Marcos "Xuxa" Levy, André Abujamra e Marisa Orth. A banda nasceu depois de uma "jam session" incentivada por Fernando Salem na casa de espetáculos Aeroanta. Oficialmente, o grupo encerrou a carreira no final da década de 90, mas voltou a se apresentar nos anos 2000. A última apresentação aconteceu em 2006.

Na época em que a banda começou a se apresentar, a Música Popular Brasileira ainda revelava uma cisão mais pronunciada entre as obras mais elitizadas - consideradas de "bom gosto" - e as mais populares - consideradas "bregas". Hoje, parece ter ocorrido uma espécie de massificação da MPB e o que era cafona se tornou "cult".

Paulo Cesar de Araújo, em seu livro "Eu não sou cachorro não: Música Popular Cafona e Ditadura Militar", questiona:

"A música de Waldik Soriano ou de Nelson Ned não costuma ser objeto de análise ou debate, a não ser excepcionalmente, em conversa de botequim. (...) Por que o público de classe média universitário associa o período do AI-5 apenas à obra de artistas como Chico Buarque, Caetano Veloso ou Gonzaguinha? E por que este público geralmente só conhece e canta as canções do repertório da MPB?"

O autor, mais adiante, recorre ao conceito de "enquadramento da memória" de Michael Pollak, segundo o qual a perspectiva de determinados grupos - geralmente, aqueles que ocupam posições mais privilegiadas - passa a ser oficializada. Os "enquadradores" são historiadores, pesquisadores, críticos que seguem (e também definem) certos critérios para avaliar as músicas. São eles, por exemplo, os responsáveis pela exclusão, nos livros didáticos de História, dos nomes ligados à música tida como "cafona" - algo que também foi observado por Araújo. Há ainda outras questões, como a associação à tradição ou à modernidade como condição para a aceitação de uma obra musical, o boicote ideológico etc. Mas não me aprofundarei aqui.

O que quero ressaltar é que temos visto muitas obras musicais passarem de uma categoria inferior para outra superior (algo que aconteceu com várias manifestações artísticas, em diferentes épocas). As canções - assim como outras formas de arte - podem se revestir de novos significados que envolvem mudanças nos valores prevalecentes na sociedade. Talvez, esta transformação tenha sido uma das responsáveis por permitir que canções como "Eu vou tirar você desse lugar", "Pare de tomar a pílula" (ambas de Odair José) e "Cadeira de rodas" (Fernando Mendes) deixassem de ser tão discriminadas - assim como programas de tevê com banheiras, brigas ao vivo e exames de DNA.

Talvez, tenha sido esta a razão do fim* da Banda Vexame, já que o impacto das canções e das improvisações não seria o mesmo. Discordo. Particularmente, acho sensacionais as releituras feitas pelos músicos, sem contar que as sátiras apresentadas por eles entre uma canção e outra são sempre bem colocadas. O humor se faz presente até nos arranjos criados por eles, que associam o "brega" à bossa nova, ao rock e ao pop. Para mim, esta é uma maneira genial de criticar justamente aquela segregação entre a "fina" música "de qualidade" e o "cafona". Ainda que esta divisão não esteja mais tão clara atualmente, a interpretação dada pela Banda Vexame remete às mudanças de visão sobre determinadas obras artísticas, fazendo com que questionemos por que uma canção que ontem era empurrada para o quarto de empregadas hoje está no quarto do filho dos patrões, por que uma guitarra pode mudar a representação de uma música. Creio que a Vexame, hoje, seria reavaliada e ressignificada - da mesma forma que tantas outras manifestações, como foi mencionado acima. E permaneceria incrível.

Apesar do encerramento das apresentações da banda, todos os talentos que a compuseram seguem acrescentando pérolas especiais às artes:

Marcelo Papini é cantor e violonista. Integrou o grupo Bom Bom durante os anos 80 e fez sucesso com a canção "Vamos a la playa". Segue se apresentando nas noites paulistanas. Na Banda Vexame, interpretava o personagem "Cido Campos".
Carlos Pazetto é "Malcolm Everson". Atua como cenógrafo e figurinista. Hoje, trabalha com moda. 
Fernando Salem faz o personagem "João Alberto". Além de cantor e compositor, é roteirista. Ao lado de André Abujamra, foi o responsável pela produção do disco da Banda Vexame.
Carneiro Sândalo é baterista. Trabalhou com a banda Karnak e em várias outras produções musicais.
Jean Arnoult é flautista e saxofonista. Apresenta-se com Jorge Ben Jor & Banda do Zé Pretinho. 
Reinaldo Chulapa é contrabaixista, arranjador e produtor musical. Gravou com grandes nomes do samba. Integrou também a banda do programa Fanzine (TV Cultura), cujo diretor musical era Fernando Salem.
Marcos "Xuxa" Levy é maestro e tecladista. Atua como diretor musical e artístico. É responsável por várias trilhas sonoras na TV.
André Gordon integrou a banda Luni, que também contava com Marisa Orth como vocalista. 
Outro André - o Abujamra - é ator, cantor, compositor e multi-instrumentista. Ao lado de Maurício Pereira, formou a (pequena) banda Os Mulheres Negras. Depois, integrou a banda Karnak. Atualmente, segue em carreira musical solo e atua em filmes e séries. Na Banda Vexame, é baixista.
Marisa Orth é atriz. Como vocalista da Banda Vexame, interpreta "Maralu Menezes", uma apresentadora de tevê bastante extrovertida (e um tanto atrevida). Também integrou a banda Luni e atualmente canta no show "Romance Volume III".

Além de constar entre minhas referências artísticas, a Banda Vexame faz parte de minha memória emocional. E Marisa Orth foi a principal responsável por minha percepção, aos 12 anos de idade, sobre meu amor pelas artes (ainda que ela sequer imagine isso).

Na verdade, desde bem pequena, eu passava horas escrevendo, desenhando e, também, tentando entender como eram feitos aqueles programas infantis que tanto me encantavam. Nas escritas e desenhos, usava em muitas histórias (e até nas tarefas escolares) os personagens a que assistia na tevê. 

Quando assistia à programação infantil (em sua grande maioria, produzida pela TV Cultura), não me contentava em desligar a tevê no final. Gravava os créditos usando um videocassete e depois pausava para ler e até anotar os nomes dos responsáveis por cada trabalho. Como acompanhava os programas noturnos - Vitrine e Metrópolis, principalmente -, que mostravam os bastidores e entrevistavam atores, diretores e outros profissionais das artes, rapidamente identificava aqueles que criavam, dirigiam ou mesmo "vestiam" meus personagens favoritos. Aos poucos, aprendia quem fazia cada coisa e isso me fascinava. Muitos daqueles trabalhos tinham o toque de alguns dos mesmos integrantes da Banda Vexame, como André Abujamra e Fernando Salem, que produziram e criaram trilhas sonoras e de abertura para muitas produções televisivas. Naquela época, eu ainda não conhecia o grupo musical.

Mesmo com todo esse gosto pelas produções culturais, afirmava que eu seria uma médica pediatra. Pediatra, por quê? Porque eu achava meu pediatra muito legal: ele permitia que eu revirasse o consultório inteiro. Mas também acredito que minha resposta "automática" trazia um pouco das marcas de uma sociedade que ainda descarta a arte como trabalho. Ah! Mas eu tentava "escapar" um pouco disso: Quando perguntavam, dizia que, quando crescesse, além de pediatra, seria escritora, desenhista e repórter (esta última profissão, por causa do personagem Tintim, de Hergé).

Continuei a repetir isso até uns 11 anos de idade. Uma noite, meus pais e eu saímos e chegamos mais tarde em casa. Era domingo. Alguém ligou a televisão e eu assisti, pela primeira vez, a uma sitcom que fazia muito sucesso: "Sai de Baixo". O cenário e o fato de ser gravado ao vivo em um teatro me encantaram logo de início. Em outro domingo, naquele mesmo ano (1996), levantei pela manhã e vi um exemplar da Revista da Folha sobre uma cadeira da cozinha. Na capa, estava a atriz Marisa Orth. Pensei: “Ah! É aquela atriz que faz o papel de Magda!”. Abri e comecei a ler. Conheci um pouco sobre sua carreira, as peças teatrais que estrelou e, sobretudo, seu amor à arte. Isso me tocou de tal forma, que fiquei um bom tempo ruminando sobre sua vocação, a forma como ela se deu conta disso, tão cedo... Uma vez, ouvi Marisa dizer que, quando era criança, imaginava que todos queriam ser atores quando crescessem. Achei graça: "Nossa! Imagine se todas as crianças quisessem... Mas o que eu quero?"

Um pouco depois, alguém voltou a fazer aquela pergunta clássica, que todas as crianças ouvem: “O que você quer ser quando crescer?”. Mais uma vez, respondi “pediatra”, por hábito. Mas, dessa vez, a resposta saiu incerta. Foi então que me questionei, pela primeira vez: “Eu quero mesmo ser pediatra?”. Tentei me imaginar trabalhando como médica, mas não consegui. Além do mais, minhas habilidades estavam concentradas em língua portuguesa e artes. Pensei também em todas as brincadeiras que fazia com meus primos e me lembrei que reproduzia todo o enredo, a encenação e até as falas dos programas que acompanhava... 

É... Eu não queria ser médica. Eu jamais seria uma. E não sou. Marisa Orth não sabe disso, mas foi a responsável por minha reflexão sobre minha vocação. Eu havia nascido para as artes. Perguntei à minha mãe: “Acho que quero ser atriz. Posso?” e ela respondeu: “Claro que sim! Você pode ser o que quiser!”. 

Alguns anos se passaram. Em 2000, entrou em cartaz o espetáculo musical “Marisa Orth e Banda Vexame no Jardim das Delícias”, no Teatro Jardel Filho (hoje, Teatro Brigadeiro). O ingresso para me sentar na primeira fila foi meu presente de aniversário de 15 anos. Minha "festa de debutante" foi sentida apenas por mim, que vibrava ali, bem perto daqueles que admirava. No final, recebi um beijo (ainda que de longe, jogado do palco) da talentosíssima Marisa Orth, que mora em meu coração. Este foi meu presente. É uma de minhas melhores recordações. Foi melhor do que qualquer festa.

Mais uma vez, a areia caiu na ampulheta. Fiz alguns cursos de teatro, cinema e TV. Formei-me no ensino técnico em Publicidade e Propaganda e depois, no bacharelado em Filosofia - e até neste curso superior, dei um jeito e cursei a disciplina "História da Cenografia e Indumentária", na ECA. Na verdade, meus planos eram estudar tudo aquilo que me atraía e só depois partir para minha paixão maior. Escolhi Filosofia porque sempre fui muito reflexiva, buscando respostas... Além disso, acredito, ainda hoje, que o "amor ao saber" esteja relacionado a todas as outras ciências, uma vez que foram necessários pensadores para que todas as descobertas, invenções e conceitos fossem concebidos. Mas, entre um pensamento e outro, muitas coisas aconteceram e afastei-me dos palcos por um tempo. Acho que os filósofos são muito sensíveis e se magoam com facilidade... Depois, voltei brevemente ao tablado, através da dança. 

Os ponteiros do relógio mudaram de posição mais uma vez. Em 2016, publiquei meu primeiro texto dramático e atualmente, estou escrevendo mais dois. Ainda que eu não volte a pisar nos palcos como atriz, estarei presente por meio de minhas palavras. Não sei o que acontecerá. Não sei se estou trilhando o caminho certo - aliás, não sei se ele existe. Só sei que estou seguindo os passos da arte. Para onde ela me conduzirá? Não tenho respostas. Assim como na música e nas demais manifestações artísticas, nossos planos passam por muitas ressignificações. Nós somos os responsáveis pelos diferentes "enquadramentos", avaliando e estabelecendo critérios - que nem sempre têm sucesso. 

A criança que há em mim continua bastante ativa e curiosa, querendo saber sobre bastidores, criando mil e uma coisas, pensando em histórias, personagens, cenários e figurinos. E quando uma criança imagina, tudo vira realidade, mesmo que seja apenas para ela. Continuo seguindo meu rumo. Assim sou eu.

* Atualização: A Banda Vexame, apesar de ter passado por um "encerramento de carreira", continua a existir e fará quatro apresentações no SESC Pompeia, em setembro deste ano.

Carmem Toledo


Imagem: Banda Vexame em 1996.
Fonte: http://www.fernandosalem.com.br/FERNANDO_SALEM/FOTOS/Paginas/Bandas.html

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