quinta-feira, 20 de abril de 2017

"Eu segundo Eu": O cine-show de Fernando Salem

por Carmem Toledo 


Falar de si é tarefa complexa, apesar de fazermos isso sempre, na caótica pescaria diária praticada nas redes sociais, onde quem cai não é peixe, e sim mais um ego virtualizado. Mas a arte tudo purifica - e também profana -, salvando-nos e permitindo que encaixemos o "eu" nosso de cada dia em seu ventre poético. É isso que faz Fernando Salem em seu show "Eu segundo Eu": o artista consegue, brilhantemente, traduzir-se em música, poesia e imagem.

A tradução de si mesmo exige antropofagia - e esta arte de devorar-se pressupõe a assimilação de tudo que diz respeito ao Homem, que é deglutido junto com seu ego. É assim que nasce a cultura, rebenta das relações humanas, das diferenças entre os povos e daquilo que os iguala - a Humanidade. 
Chamarei de "devoração cultural" o que vi na apresentação de ontem, 19 de abril - Dia do Índio -, no Teatro Viradalata - localizado na Rua Apinajés, que é vizinha de outros tantos endereços abençoados por palavras indígenas: Aimberê, Cayowáa, Cajaíba, Caraíbas... Oswald sorriu, tenho certeza disso. Quase cheguei a vê-lo e ouvi-lo sussurrando na plateia: 

"Só a ANTROPOFAGIA nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente. Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos, de todos os coletivismos. De todas as religiões. De todos os tratados de paz. Tupi, or not tupi that is the question." (Oswald de Andrade, Manifesto Antropófago)

Tive a impressão de testemunhar tudo isso ali, em meio aos desvarios da Pauliceia do outro Andrade.
Mas, acorda, Carmem! Eles não estão aqui. Já se foram. Ou não. Suas palavras ainda ecoam, ricocheteiam nas paredes do teatro, produzindo sons, rimas, sílabas poéticas e loucura travestida de poesia. Onde reside a lógica disso tudo? Que importa? A beleza da arte é ilógica, ágil como a euforia da criança que já é um "Eu" a devorar tudo à sua volta. 
O que disse, Oswald? Ah, sim: 

"Ágil o teatro, filho do saltimbanco. Ágil e ilógico. Ágil o romance, nascido da invenção. Ágil a poesia.
A poesia Pau-Brasil. Ágil e cândida. Como uma criança." (Oswald de Andrade, Manifesto Pau-Brasil)

Esqueci! Ele não está aqui. Ou está. Talvez, eu já o tenha devorado. Mas, de novo, o que importa? 
Com ou sem a interferência de Oswald, tudo isso resume a sensação que tive ao assistir a "Eu segundo Eu", um cine-show (isso mesmo) que presenteou o público com obras musicais de ontem e de hoje e participações mais que especiais: Moreira da Silva, Orson Welles, Assis Valente, Caetano Veloso, Reginaldo Rossi, Odair José, Paulo Miklos, Carneiro Sândalo, Emerson Leal, Marcos Bowie, todos baixaram ali, encarnados ou não, "psicogravados" na arte que tomava conta do espaço... Talvez, a Química de sr. Vidal (pai de Fernando Salem homenageado em uma das canções) tenha ajudado a filtrar e pintar os átomos dos participantes, fazendo-os mais presentes durante o show. Se isso é absurdo? E o que não é? Momento artístico bom é aquele que empolga e leva nossa imaginação ao caos - leva e eleva. Tantos artistas já passaram por isso... E o mundo não se acabou.
Arte boa mesmo é surrealista, antropófaga, ilógica, como nosso "eu"; como nosso "nós".

Carmem Toledo
(com sussurros de Oswald de Andrade)




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