O cartunista Lucas Libanio conta um pouco sobre seu processo criativo e fala sobre o "politicamente correto" e os caminhos que os quadrinhos vêm tomando no Brasil.
Mineiro de Uberlândia, Lucas formou-se em Belas Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais e em Cinema de Animação pela Escola de Belas Artes de Minas Gerais. Começou fazendo trabalhos de animação para publicidade, trabalhou com ilustração e HQs, foi professor no Instituto de Arte e Projeto (INAP) e, atualmente, colabora com a produção de tiras no jornal Super Notícia (um dos jornais mais vendidos no Brasil, com circulação em Belo Horizonte). Confiram a entrevista completa!
Lucas Libanio em processo criativo de uma das tiras de Hans Grotz. Embaixo, a tira pronta. |
Carmem: Primeiramente, conte como se deu a descoberta de seu dom para o desenho.
Lucas: Nem sei se é
dom realmente. A maioria das crianças desenha e quando chega em uma
certa idade se entediam por não ficarem mais satisfeitas com o que
desenham e acabam parando. Eu nunca parei e, de certa forma, é por
isso que consigo chegar a algum resultado. Acho que comecei a
desenhar tentando imitar os personagens dos desenhos animados tipo
Pica-Pau, Pernalonga e Mickey.
Uma das tiras de Hans Grotz em que aparecem algumas influências no trabalho de Lucas Libanio. |
Carmem: E as tiras?
Seu gosto por elas nasceu a partir do contato com as artes de quais
cartunistas? Você se inspirou – ou ainda se inspira - em alguns
deles?
Lucas: Costumo dizer
que queria desenhar seres humanos como o André Franquin (Gaston
Lagaffe) e animais como o Walt Kelly (Pogo). Meu desenho está
impregnado de influências de cartunistas dos anos 20 e 30 como EC
Segar (Popeye) e Billy DeBeck (Barney Google & Snuffy Smith).
Comecei a ler quadrinhos com o Pato Donald e o Recruta Zero, logo em
seguida, Asterix e Tintim, que eram álbuns mais caros que os gibis
de banca, então não tinha como comprar sempre. Creio que o Pato
Donald e Recruta Zero me abriram o gosto pras tiras americanas
clássicas, assim como Asterix e Tintim me abriram pros quadrinhos
Franco-Belgas. Sempre me surpreendo quando me deparo com coisas de
50, 100 anos atrás que não conhecia.
Algumas tiras de Hans Grotz, por Lucas Libanio. Clique sobre a imagem para ampliá-la. |
Lucas: Eu rabisco o
tempo todo. Anoto ideias em forma de desenhos rápidos só pra não
esquecer. Tento manter uma linha básica de comportamento pros
personagens não virarem algo genérico demais, mas muita coisa vai
se moldando é com o uso mesmo. Tem piadas que fiz com o Grotz no
início que não cabem mais hoje.
Hans Grotz ganhou duas publicações:
"Opiniões Descartáveis" e "Mais Opiniões Descartáveis"
Foto: Carmem Toledo
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Carmem: Sobre as
tiras de Hans Grotz (que ganharam duas publicações – a primeira,
editada com recursos próprios e a segunda, concretizada graças ao
financiamento coletivo), gostaria de saber se a personalidade do
protagonista é uma via facilitadora da liberdade de expressão de
determinadas opiniões e críticas políticas, sociais ou
comportamentais. A aparência física - que me fez lembrar muito do
escritor Charles Bukowski, com um leve toque de Capitão Haddock
(personagem da HQ belga “As Aventuras de Tintim”, de Hergé) - e
o comportamento do personagem (um homem bruto e solitário que vive
com um tucano empalhado) foram planejados, tendo a intenção de
romper as barreiras do “politicamente correto”?
Lucas: Na verdade, se eu
tiver que pensar o tempo todo no que é politicamente correto ou não,
eu nem faço nada. Eu cresci acostumado com personagens que não têm
obrigação de dar exemplo de conduta, justamente por serem
ficcionais.O Capitão Haddock é um bom exemplo, mas também o
Popeye, o Pato Donald e até o Asterix e o Obelix. Acho que se você
ri do Coiote tentando jogar uma rocha no Papa-Léguas não quer dizer
que você quer sair por aí jogando rochas nas pessoas. O Bukowski
mesmo, através de seu alter-ego Henry Chinaski, é o cara que você,
dentro da história, está do “lado” mesmo sem realmente
concordar com nenhuma de suas atitudes. Um personagem é um exagero
que muitas vezes não funciona existir no mundo real. Costumo dizer
que o Hans Grotz é uma versão minha sem polimento e sem traquejo
social. Suas opiniões são, muitas vezes, um pastiche das minhas.
"Costumo dizer que o Hans Grotz é uma versão minha sem polimento e sem traquejo social. Suas opiniões são, muitas vezes, um pastiche das minhas. " Lucas Libanio. |
Carmem: Quanto às
tiras dos Molekóids, é possível notar também a liberdade na
linguagem e nas histórias criadas por você. A inocência das
crianças permite que sejam ditas frases e sejam tomadas certas
atitudes que nós, adultos, na maioria das vezes, condenaríamos ou,
no mínimo, olharíamos com certa dose de zelo exacerbado. Outra
personagem que prova isso é Mafalda, do cartunista argentino Quino,
que se utiliza da pureza de uma garotinha para expressar críticas
políticas e sociais. A infância é uma fase em que os tabus não
ganham espaço – ou encontram dificuldade para se instalar?
Personagens representantes desta fase são bons instrumentos para a
manifestação de um olhar crítico do autor?
Algumas tiras dos Molekóids, por Lucas Libanio |
Lucas: Inicialmente
tinha feito uma série de dez tiras com crianças pra tentar oferecer
a uma publicação infantil; acabou não dando certo. Anos depois, eu
publiquei uma amostra dessas tiras na internet o Giorgio Cappelli, da
editora Bila, me perguntou se eu queria publicar no site dele uma vez
por semana, aliás, o nome “Molekóids” foi sugestão dele. Acho
um bom exercício trabalhar dentro deste conceito. Eu uso muita coisa
da minha infância em algumas piadas. Diferente da Mafalda, eu deixo
os Molekóids meio “alienados” no mundo deles. Não os vejo tendo
opiniões e nem fazendo crítica com conteúdo “adulto”. Gosto de
pensar que eles nem sabem quem é o presidente e nem que existe
engajamento e militância.
Carmem: Sabemos que
a charge e as tiras sempre foram instrumentos muito utilizados na
crítica política e social por meio de sátiras. O Brasil tem
grandes cartunistas que, inclusive, entraram para a história da arte
de protesto (exemplos disso são os nomes que estiveram à frente dos
jornais O Pasquim, O Cruzeiro e da revista Pif Paf).
Em que medida você acredita que a charge, ao utilizar estratégias
humorísticas na transmissão de determinadas informações,
interfere na editorialização do veículo em que ela está inserida?
Lucas: A charge no
Brasil já foi muito forte. Creio que no passado as charges estavam
bem em sintonia com os veículos onde impressas. O Cruzeiro
mesmo muitas vezes ilustrava a matéria de capa com uma charge. O
Pasquim e a Pif Paf eram jornais de humor e resistência.
Hoje acho que muitos jornais as mantêm só por tradição mesmo. A
gente vê muita charge circulando na internet, algumas já passaram
por jornais e revistas e outras circulam exclusivamente em meio
virtual. Os compartilhamentos em redes sociais desassociam
completamente a charge de qualquer veículo de imprensa. Na maioria
das vezes, nem se sabe de onde vieram.
Carmem: Na sua
opinião, quais caminhos esta arte vem tomando no Brasil?
Lucas: Eu realmente
acho que a leitura de quadrinhos não é mais o entretenimento de
massa que já foi um dia. Basta comparar as tiragens dos gibis de 40
anos atrás e as de hoje. No entanto, muita gente continua produzindo,
muitas vezes de forma independente (como eu mesmo faço). Tiragens
mais baixas e muitos mesmo só existem em meio virtual. Há uma boa
variedade de temas, estilos de desenho e linguagem no que se tem
produzido, mas dá pra contar nos dedos os profissionais que
conseguem viver exclusivamente disto.
Carmem: Quais são
as dificuldades encontradas por quem se dedica aos quadrinhos em
nosso país?
Lucas: Acho que são as
mesmas dificuldades que outras formas de expressão encontram. Na
verdade atualmente tudo que não é “primeira necessidade” acaba
comprometido. Existe um outro fator também, a maioria dos
cartunistas não é lá muito empreendedor (eu me incluo
logicamente). É muito dificil comercializar nosso trabalho.
"Eu nunca parei e, de certa forma, é por isso que consigo chegar a algum resultado." Lucas Libanio. |
Carmem: Para
encerrar, gostaria que você dissesse por que vale a pena persistir
neste caminho.
Lucas: Eu realmente não
tenho escolha. É o que sei fazer. Na verdade, é a única coisa que
faço com uma certa competência (e alegria). Nada contra quem fica
desiludido e resolve ser feirante ou caminhoneiro... ou advogado. Pra
mim não funciona. Acho que é patológico.
Imagens: Arquivo pessoal de Lucas Libanio.
Fotografia dos livros "Opiniões Descartáveis" e "Mais Opiniões Descartáveis": Carmem Toledo sobre obra de Lucas Libanio
Mais informações sobre Lucas Libanio podem ser encontradas na página
Seu trabalho pode ser acompanhado nos links abaixo:
Seu trabalho pode ser acompanhado nos links abaixo:
Hans Grotz:
Facebook: https://www.facebook.com/grotztiras
Site "Crie suas HQs": http://www.criesuashqs.com/as-tiras-do-hans-grotz
Molekoids:
Site "Crie suas HQs": http://www.criesuashqs.com/as-tirinhas-dos-molekoids-de-lucas-libanio/
Desenho gentilmente elaborado por Lucas Libanio, em 2017, para meu blog. |