quarta-feira, 22 de março de 2017

Reflexões sobre a pós-modernidade: "TERRADOIS"

por Carmem Toledo

Ontem a televisão brasileira recebeu um presente. Dentro dele, o futuro.
Um espelho incômodo foi colocado diante dos telespectadores - Narcisos ocupados demais com a correnteza do tempo e com o sonho da imortalidade de seus egos. E eis que nos vimos. Lutemos para que não nos afoguemos em nossas próprias imagens.
Falo de "TERRADOIS". Nunca assisti a um programa de tevê que mexesse tanto comigo.

Faz-se urgente o debate sobre tudo que nos diz respeito, para que nos lembremos de que somos humanos. As reflexões sobre a pós-modernidade são nosso principal instrumento para que consigamos pisar sobre esse solo incerto que, no entanto, se apresenta tão concreto para nós, em nossa pretensa ilusão de que tudo controlamos, de que somos imortais. Ao assistir ao primeiro episódio, fui tocada por tudo isso. Por alguns instantes, senti-me como espectadora da vida que todos nós transformamos em uma encenação sem fim, mas teimamos em afirmar como realidade palpável. Talvez, o incômodo mencionado no início deste texto se deva à constante negação - mantida por nossas "fábricas de ilusão", dentre elas, a própria televisão e a internet - de nossa finitude. Creio que "TERRADOIS" venha para romper esse paradigma, ao mesmo tempo que nos faz olhar, de maneira mais crítica, para tantos outros.

A ideia original do programa partiu do psicanalista Jorge Forbes. A concepção do formato coube à atriz Maria Fernanda Cândido e ao diretor de programação da TV Cultura, Marcos Amazonas. Dirigido por Mika Lins e Ricardo Elias, a produção tem direção de arte de Henrique Bacana e casting de Mariana Guarnieri. Do formato aos temas debatidos, a produção revela-se de uma riqueza incrível. A obra usa a teledramaturgia como um processo que leva a discussões sobre a pós-modernidade, unindo arte e teoria em uma linguagem de agradável assimilação. Durante a atração, são revelados também detalhes do processo criativo, como a primeira leitura do texto a ser encenado, o ensaio dos atores e sua direção - que interpretei, particularmente, como mais uma maneira de mostrar o que há por trás das "realidades" criadas por nós mesmos (na arte e na vida), que já não nos limitamos - ou melhor, não nos conformamos - em ser meros animais sobre a Terra.

A crença no progresso, a incessante busca de uma pretensa "verdade" e nossas tentativas frustradas de compreensão do mundo deram lugar, pouco a pouco, a uma realidade multiforme que produzimos e pela qual somos afetados sem nos darmos conta. Por estarmos em aceleração constante - conduzindo e sendo conduzidos por um ritmo sem precedentes -, não nos apercebemos das mudanças e seus impactos no meio em que vivemos; a avassaladora velocidade da evolução tecnológica e científica, o avanço dos meios de comunicação, a rápida difusão das artes arrastaram-nos, transformando-nos simultaneamente em público e produto e modificando paradigmas no pensamento comum.

Um dia, acordamos e já não somos os mesmos. Ou o mundo não é o mesmo. De qualquer modo, estamos inseridos neste orbe e somos nós que produzimos suas mudanças, regras e todos os aspectos que tanto nos espantam - apesar de terem nascido de nossas próprias personalidades. Que planeta é este em que vivemos? Certamente, já não é a mesma Terra que nossos ancestrais conheceram... Temos dificuldade de reconhecer a nós próprios! Tudo parece ambíguo e já não olhamos para o chão em que pisamos com os mesmos olhos de nossos bisavós. À nossa frente, está sempre um lembrete de que há outro mundo que também nos chama, em que vivemos e do qual já não conseguimos nos desligar - ou nos desconectar. O virtual tornou-se uma realidade. Somos perfis em constante interação com outros seres tão ambíguos quanto nós. A vida já não é limitada a células, órgãos e tecidos: também se estende a códigos, bits, sistemas e redes que nos conduzem a um futuro desconhecido - porém nada distante. Nunca o tempo foi tão relativo. Já vivemos o futuro. Nossa sorte é agora. Vivemos em TERRADOIS.

Carmem Toledo
http://culturofagicamente.blogspot.com




TERRADOIS
Apresentação: Jorge Forbes e Maria Fernanda Cândido
Direção: Mika Lins e Ricardo Elias
Direção de arte: Henrique Bacana
TV Cultura
Terça-feira, 22h30

Descrição da imagem (#acessibilidade):
Sobre um fundo negro, lê-se, em letras maiúsculas e de traço reto: "Terra Dois". Através da escrita, há linhas verticais e outras levemente inclinadas, como se estivessem dividindo o plano de fundo.



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