A entrevista a seguir foi realizada em março/2008.
Clara Haddad nos leva a uma fantástica viagem pelos contos, despertando em nós aquela criança adormecida, sempre aberta a novos aprendizados e experiências.
A atriz e contadora de histórias brasileira Clara Haddad, moradora em Portugal, concedeu-nos uma maravilhosa entrevista, falando sobre seu projeto "Contos da Carochinha - Brincadeiras com Arte".
A atriz e contadora de histórias Clara Haddad |
Clara: Sou brasileira, natural de São Paulo (a minha eterna e saudosa terra da garoa).
Tenho formação como atriz e educadora física e por estes motivos, sempre viajei para muitos cantos do mundo fazendo cursos e formações na minha área e também me apresentando e levando minha arte aos lugares. Estive nos E.U.A e Canadá, onde fiz excelentes workshops, trabalhei com profissionais experientes e renomados e estive em contato com professores e pessoas maravilhosas, no decorrer do meu percurso profissional, que sem dúvida contribuíram muito para eu ser o que sou hoje.
Minha vinda a Portugal aconteceu de forma gradativa. Em 2003, fui pela primeira vez ao país para ministrar minha oficina de expressão dramática para crianças, que sempre uniu as duas coisas que mais amo: histórias e teatro. Na altura que estive aqui, viajei por vários lugares e fui me encantando com o povo e a cultura de Portugal.
Retornei mais duas vezes para cá antes de me mudar definitivamente em 2006.
Atualmente me dedico, quase que exclusivamente, ao meu trabalho como narradora oral. Dou oficinas de formação para novos contadores e faço apresentações e espetáculos com base nos contos tradicionais em encontros, seminários, maratonas, ONGs, teatros e casas de cultura em Portugal, Brasil e Espanha.
Carmem: Como e quando você descobriu que contar histórias seria uma boa forma de arte?
Clara: Sempre ouvi histórias, desde pequena. Elas sempre fizeram parte do meu imaginário e da minha vida. Nunca pensei que um dia contaria as mesmas histórias que me encantavam quando criança.
Sempre inventei contos, escrevi e trabalhei com isso, mas era uma atividade paralela que não mostrava a ninguém.
Na verdade, me formei como atriz e tinha uma outra idéia do contador de histórias e achava que nunca conseguiria contar com a naturalidade dos contadores tradicionais, mesmo sendo atriz e tendo técnicas para memorizar e trabalhar um conto.
Em 1998, tomei maior contato com essa atividade, era o "boom" de novos contadores, mas não me achava capaz de contar contos, achava que faltava algo. Não era a mesma coisa de decorar um texto, não era fazer o trabalho de atriz ao qual estava acostumada. Era ser eu mesma, abrir meu coração e doar palavras e afetos às pessoas… Achava isso extremamente difícil e ia adiando a chamada ”virada na área da arte”.
Continuava meu trabalho como atriz e preparadora de elenco e “contava as histórias” de outra forma, com teatro infantil e com minhas aulas de expressão dramática para crianças.
Com o tempo, meu desejo de só contar histórias cresceu e cresceu a tal ponto que a paixão tomou conta. Queria só fazer isso na vida. Mas como fazer isso?! E por que não utilizar minhas formações tanto em dança, esportes e artes para fazer um trabalho diferenciado e com minha identidade?
Fui pesquisando e me envolvendo com este trabalho e descobri outros contadores que contavam profissionalmente, descobri eventos e encontros, simpósios... foi uma grande alegria, li tudo o que foi caindo em minhas mãos, busquei outras, fiz vários cursos com pessoas fantásticas e experientes na área e fui construindo meu próprio caminho. Quando me dei conta, estava fazendo o que achava que jamais iria fazer…contar histórias com tranqüilidade, clareza, sem ser um personagem montado… sem ter nada além da minha voz e minha expressão corporal… isso era genial! Admiro-me e convenço-me cada vez mais do poder de transformação que uma história tem.
Carmem: Quando conta histórias para crianças, você sente que há alguma influência dos avanços tecnológicos atuais na imaginação e compreensão delas? Você acredita que isso gera resultados bons ou ruins?
Clara Haddad durante uma sessão de "contação de histórias" |
Tenho absoluta certeza de que podemos utilizar a tecnologia a favor da educação. Os contos podem estar nas telas dos computadores, em audiobooks, em DVD, na televisão... o que importa neste caso é que os conteúdos preservem a qualidade literária, coisa que em alguns casos não acontece.
Uma boa história e um ambiente acolhedor fazem verdadeiros milagres. E uma sessão de contos ao vivo ainda tem a vantagem de proporcionar a troca de olhar, de afeto, de impressões que de outra forma (TV, DVD, audiobook) não acontece. Os contos continuam sendo e sempre serão um meio de atingir todos os que ouvem histórias. Acredito que se a história não for boa, se não for contada com verdade, com emoção e com o coração, ela não atinge os ouvintes! Porque narrar histórias não é teatro, não é animação: é um resgate de uma atividade ancestral que ganha cada vez mais adeptos e retoma a força que tinha em tempos idos.
Carmem: Você já foi surpreendida pelas crianças com alguma interpretação inusitada a partir de seus contos?
Clara: Os contos falam de vida, falam de pessoas como nós, com erros, defeitos, medos, alegrias... Tudo! É imediata a identificação das crianças e não só… dos adultos também.
Mas já ouvi coisas extraordinárias em sessões de contos.
Como um menino, que reagiu quando ouviu a história tradicional brasileira ”João Jiló”. Ele tinha o mesmo nome do personagem principal do conto, que era um menino que queria comer passarinhos… a história seguiu e em dado momento, quando ele ouviu que o passarinho começou a cantar depois de morto na barriga do personagem… este menino do público arregalou os olhos, levantou os braços e falou: "Me chamo João e também já comi passarinho, mas isso nunca me aconteceu!" E com cara de “assustado” e curioso, continuou a ouvir a história até o final e ria, ria até não poder mais. No final da sessão veio falar comigo e falou que nunca mais comeria um passarinho, pois não queria que o bicho falasse na barriga dele.
Outra foi de uma menina que ouvia uma história de três irmãos que foram ao bosque onde morava uma bruxa; ela logo falou: “tenho dois irmãos e vou sempre na casa da minha tia no Algarve”.
Essa foi a mais recente, mas já aconteceu tanta coisa… As crianças são fabulosas e inventivas demais e me divirto muito com isso, com essa espontaneidade e forma tão franca de falar...
Carmem: Você vê alguma diferença entre a recepção dos contos pelas crianças portuguesas e pelas crianças brasileiras?
Clara: Não, na verdade criança é criança em todo lugar do mundo.
Talvez a única diferença que vejo é como é tratada a hora do conto aqui [em Portugal] e como é tratada no Brasil.
Carmem: Você acha que hoje as crianças têm mais opções de cultura voltada especificamente para elas (no Brasil e em Portugal)?
Clara: Sim, acho que o leque de opções para o público infantil é gigantesco. Aqui há muitas produções e trabalhos para infância e juventude (principalmente relacionadas ao conto).
No Brasil, há uma variedade imensa de espetáculos e projetos para as crianças. Existem muitos e excelentes profissionais, mas que, infelizmente, muitas vezes se vêem limitados de se desenvolverem mais, por falta de apoio.
Mas acho que neste sentido, não é só o Brasil que enfrenta problemas com suas produções. A falta de incentivo e patrocínio de projetos é algo que acontece em todo o lugar do mundo, o que é uma pena, pois saúde, educação e cultura deveriam ser prioridades para se criar um mundo melhor.
Carmem: Em que sentido você acredita que os contos podem colaborar no desenvolvimento das crianças e para a formação de melhores adultos?
Clara: Os pequenos e também os grandes leitores continuam atraídos pelo fantástico e pelo imaginário que as histórias têm. Mas não é apenas isso, como disse anteriormente, os contos falam, de uma forma sutil, da realidade do ser humano, de conflitos, de vida, de suas buscas e desejos.
Quem é que não desejaria ser um herói? Quem é que nunca teve que “enfrentar” um "monstro” em sua vida? Quem é que nunca teve um trauma ou uma dificuldade? Ou um momento de alegria intenso e de felicidade?
Será que quando eu leio um conto africano, um aborígene ou um conto chinês e me identifico com suas personagens, não é porque, de alguma maneira, existe uma semelhança entre todos os seres humanos quanto à maneira de enfrentar muitas situações na vida?
São essas questões que levanto e por isso acredito sim que os contos colaboram para uma visão de nós mesmos como pessoa, mesmo que seja de uma forma inconsciente. Os contos nos fazem refletir e, até mesmo, rir de nós mesmos. Essa é a grande magia dos contos!
Entrevista realizada por e-mail por Carmem Toledo em março/2008
Fotos: acervo pessoal de Clara Haddad
Mais informações sobre Clara Haddad podem ser encontradas no site da Escola de Narração Oral Itinerante: http://www.escolanarracao.com/