segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009
Entrevista com Cátia Benevenuto: A superstição segundo Espinosa e o conflito no Oriente Médio
A entrevista a seguir foi realizada em fevereiro de 2009.
Cátia Cristina Benevenuto de Almeida nos fala um pouco sobre a questão da superstição em Espinosa e a visão do filósofo sobre o controle das massas através da união entre religião e política, relacionando o tema ao atual conflito no Oriente Médio.
Cátia Benevenuto é doutoranda e mestre em História da Filosofia Moderna pela USP (Universidade de São Paulo).
Carmem: Você é formada em Administração de Empresas, mas, atualmente, escolheu se dedicar ao "Amor pelo Saber". Em primeiro lugar, gostaria que você falasse um pouco sobre sua opção por Filosofia.
Cátia: Sou formada em Administração de Empresas desde 1996, trabalhei com assessoria empresarial desde a minha formação até meados de 2004. Num dado momento, tive que optar por uma pós-graduação, mas eu havia cansado do mundo dos negócios, do mundo de homens/mulheres-máquinas; isso já não significava nada para mim. Fui demitida.
Foi um período difícil; eu não percebia, mas estava como os outros, no automático. E num dia daqueles, estava chateada, sem rumo, e uma amiga me perguntou: "Cátia, chega de sofrer por algo que já não faz sentido! Enfim, o que você gosta de fazer?". Eu lhe respondi: "Gosto de ler, de estudar, me interesso por filosofia, por exemplo".
E essa amiga, que já havia percorrido esse caminho rumo ao mestrado, presenteou-me com várias dicas.
Resolvi me mexer, fui atrás de algo que eu realmente gostasse e tivesse significado: então, a filosofia. Em 2006, entrei como aluna especial da pós-graduação, cursei duas disciplinas, mas meu coração bateu mesmo por Espinosa, assistindo a aulas na graduação.
Acredito - em termos bem espinosanos - que foi por uma "necessidade essencial". E pelo mesmo motivo, a escolha do tema. Tenho algo a desvendar sobre ele, é a minha questão para a vida, de quem um dia já sofreu um bocado nas teias de mentes supersticiosas. De alguma forma, busco entender o que está por trás de tais mentes para serem como são.
Carmem: Segundo Espinosa, os maiores impedimentos à democracia - o mais natural dos regimes políticos - são a divisão social e a superstição.
De que maneira esses dois elementos contribuem para a dominação?
Cátia: Espinosa, quando se refere à Democracia como o mais natural dos regimes políticos, sustenta que todo homem tem o desejo de comandar e de não ser comandado. Entendo que todos podem governar, direta ou indiretamente, expressando livremente suas idéias - o que, para o filósofo, não é algo pernicioso e sim essencial para garantir a paz e a segurança do Estado.
A divisão social só irá fomentar a manipulação de interesses e o poder nas mãos de classes mais abastadas em detrimento de outras: domínio pelo poderio social. Quanto à superstição, o domínio se faz pelo medo. O medo torna o homem servil e facilmente manipulado por aquele que detém o poder.
Segundo Espinosa, “O medo é a causa que origina, conserva e alimenta a superstição.” (Prefácio – Tratado Teológico Político)
Em verdade, Espinosa analisa a gênese política da superstição, tomando como exemplo o caso de Alexandre – o grande, citando Q. Cúrcio – “não há nada mais eficaz que a superstição para governar as multidões.” (livro IV- cap.X, in: Tratado Teológico Político)
E como diz Marilena Chauí (Política em Espinosa) “a superstição é um instrumento invisível. O homem medroso e servil julga ser glorioso morrer por aquele que o domina e explora.”
A filosofia de Espinosa não concorda jamais com nenhum regime político ou nada que faça diminuir, em favor de uns, a potência de agir de outros, ou ainda, nada que possa fazer da ignorância e da superstição um instrumento de exploração entre os homens.
Carmem: Como a religião assume o papel de sustentáculo ideológico do poder?
Cátia: A religião nada mais é do que a capa da superstição. Para Espinosa a religião de que fala a Sagrada Escritura é algo muito simples e se resume em dois preceitos apenas: amar a Deus e ao próximo. Entendo que a superstição vestida de religião sustenta o poder, parte dele, através das crenças.
Acredita-se num Deus que tem um propósito para cada um de nós, um Deus finalista, que tem por fim dirigir toda a humanidade, punindo-a por suas más ações e recompensando-a por suas boas ações.
Em verdade, nessas crenças que nos são apresentadas ainda na infância, temos um Deus que tudo vê, tudo pode e tudo sabe, mas que está exteriorizado a nós, acima de toda a raça humana. O Deus espinosano, ao contrário, é um Deus imanente, ou seja, não está separado do homem (produtor que não se separa jamais de seu produto). Somos pura expressão finita de Deus. Somos Deus em ação.
No século XVII, Deus se encontra acima dos reis, legisladores, pois é um ser transcendente e detentor de todo o saber. Sua política é embasada pelo “decreto divino”. Como já relatava o historiador Políbio (séc.II a.c in: B. de Espinosa - Tratado dos três impostores – pág.195),: “é preciso admitir que, se fosse possível formar uma república composta apenas por homens sábios, todas as idéias imaginárias acerca dos deuses e dos infernos seriam totalmente supérfluas. No entanto, já que não há Estados cujo povo não seja assim tal como o vemos, ou seja, sujeito a toda espécie de desregramentos e ações perversas, é preciso se servir, para reprimi-lo, dos temores inventados que a religião imprime, bem como dos terrores horripilantes do outro mundo, que os antigos tão sabiamente introduziram com essa finalidade.”
A credulidade assume parte desse sustentáculo; a outra parte se dá através da inconstância do temperamento humano. E o medo está presente nessa inconstância.
De acordo com Espinosa, “Se os homens pudessem em todas as circunstâncias decidir pelo seguro ou se a fortuna se lhes mostrasse sempre favorável, jamais seriam vítimas da superstição.” (Prefácio –Tratado Teológico Político).
Os homens ambicionam por poderes e honrarias - os tais bens da fortuna - , ou seja, os bens incertos ou contingentes de que Espinosa fala, pois são variáveis, ora os temos, ora não. E sobretudo, porque os homens almejam imoderadamente esses bens, sem limites, se agarram a quaisquer tipos de crenças na iminência de perdê-los, pois deste modo, acreditam assegurar que a fortuna lhes seja sempre favorável.
“A que ponto o medo ensandece os homens!” (Prefácio –Tratado Teológico político)
Credulidade, temperamento vulnerável-medo. Nota-se que, para Espinosa, as raízes da superstição estão ligadas à natureza humana.
Esta é uma longa questão, na qual pretendo me aprofundar no Mestrado.
Carmem: De que maneira religião e política se entrelaçam nos dias atuais e a que você deveria o efeito que a superstição ainda causa nas grandes massas em nosso século e quais as conseqüências disso na política atual?
Cátia: Entendo que Religião (superstição) e Política sempre estiveram entrelaçadas. Poderíamos nos alongar em vários exemplos ao longo da história, como a formação do Estado Hebraico e Jesus.
Muitos filósofos e poetas soltaram suas vozes desde então. Um exemplo é o poeta Palingênio, um século antes de Espinosa, talvez um escritor presente em sua modesta biblioteca: “É pela religião e pelo temor dos suplícios que se deve frear o populacho semi-selvagem, pois seu espírito é sempre enganador e malicioso, e por si mesmo, ele não volta de maneira alguma para o que é direito.” (Palingênio, 1524– Libra - in : B.de Espinosa – Tratado dos três impostores - pág.166)
Espinosa diz que, enquanto os homens ignorarem a si próprios e ignorarem as causas reais das coisas do mundo e de Deus, facilmente se deixarão dominar pelos devaneios da imaginação e assim cairão nas teias da superstição.
Portanto, atribuo esse efeito devastador da superstição nas mentes (ou nas massas) a essa “ignorância” de que fala o filósofo e também ao preconceito.
Hoje, o Oriente Médio nos mostra claramente como religião e política ainda se entrelaçam e com conseqüências nefastas. Em cada época, esse entrelaçamento parece assumir uma roupagem com adereços externos novos, no entanto, internamente é o mesmo de séculos atrás, enraizado em preconceitos.
Assim temos, ou melhor, vemos Israel e Palestina entre mísseis. Essa guerra é oriunda do desconhecimento máximo de Deus e não obstante de si mesmos. Morrer em louvor de Deus nosso senhor: Uma conseqüência real, atual e cruel, que envolve política e superstição em nosso tempo.
Um dia desses, ouvi uma mulher palestina em entrevista a um repórter brasileiro, quando ele lhe perguntou por que ela não deixava Gaza e voltava ao Brasil, uma vez que tinha parentes aqui. Ela lhe respondeu: “O martírio é mais agradável aos olhos de nosso senhor.”
O que mais podemos dizer sobre ela ou a ela? Que mentes são essas? Em meu entendimento, muitas dessas mentes estão no poder pelo mundo. O Oriente Médio, no entanto, é aquele que clama nesse momento, embriagado numa cultura supersticiosa. Daí, o que vemos é morte, desespero e dor em nome de Deus e domínio pela força bruta.
E o que fomenta esse conflito, nós sabemos: é o interesse político e econômico naquela região, há financiamento de armas, ou seja, financiamento da guerra.
E enquanto houver disputa de poder, haverá quem serve, quem teme, quem financia. Haverá superstição, haverá teologia-política.
“Sei efetivamente, quão arraigados estão na mente os preconceitos a que se adere como se de coisa piedosa se tratasse; sei, além disso, que é impossível libertar o vulgo* da superstição e do medo; e sei, finalmente, que a constância no comum dos homens é obstinação e que, em vez de ser a razão que os guia, é a tendência para louvar ou vituperar que os arrebata.” (Prefácio- Tratado Teológico Político)
* O vulgo, para Espinosa, não está unicamente ligado ao sentido de povo, massa, mas, sobretudo, para aquele que não quer pensar e se recusa ao trabalho de reflexão acerca das coisas. Não questiona e se convence facilmente daquilo que apenas parece ser. Vive à mercê do imaginário.
Entrevista realizada por e-mail por Carmem Toledo em fevereiro/2009.
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