domingo, 7 de novembro de 2021

Tributo à cantora Dalida: "Comme disait Mistinguett"

    Nesta postagem da série especial Tributo a Dalida, brindo os leitores com a participação de um convidado muito querido: o pesquisador musical, historiador, jornalista e ator Marcelo Bonavides de Castro. Suas pesquisas - realizadas desde os 13 anos de idade - concentram-se no Teatro de Revista Brasileiro e na Música Popular Brasileira, nos períodos de 1859 à década de 1940.
    Dalida, apesar de ser franco-egípcia, descendente de italianos e posterior a esta fase (pois sua carreira se estendeu de 1954, quando foi Miss Egito, a 1987), traz muitas referências em suas performances e é justamente por esta riqueza cultural que resolvi convidar Marcelo a escrever comigo este artigo. Nós analisamos a letra de "Comme disait Mistinguett", uma canção composta por Pierre Delanoë, Pascal Sevran e Jean Jacques Debout em 1979 e interpretada magnificamente pela diva.
    Como a ideia surgiu depois de algumas conversas que tivemos sobre o assunto, achei pertinente oferecer ao leitor um artigo em forma de diálogo. Inicialmente, propus a Marcelo que detalhássemos cada parte da letra, explicando as referências conforme elas surgissem. Pensando nisso, em primeiro lugar, realizei a tradução e a dividi, para que, então, discutíssemos os pormenores. Confiram o resultado:

     A começar pelo título, "Comme disait Mistinguett", a referência maior se apresenta na frase "Como dizia Mistinguett". Trata-se de uma alusão à mais famosa vedete de todos os tempos, a francesa Jeanne Bourgeois, conhecida pelo nome artístico Mistinguett. Além do talento e imenso carisma, ela é lembrada até hoje por ter as mais belas pernas do mundo, que foram, inclusive, resguardadas por uma apólice milionária. A partir destas informações, pergunto a Marcelo:


Mistinguett
Fonte: https://www.etsy.com/

Carmem:
Mistinguett permanece como uma referência artística e estética, ultrapassando gerações. Mesmo com as constantes transformações no conceito de beleza (sabendo que a ciência do belo estuda o conhecimento sensível e as expressões artísticas compreendidas em suas relações com contextos sociais e éticos), sua imagem parece transpor os julgamentos estéticos do final do século XIX até hoje. Como você, que conhece a fundo a História do Teatro de Revista e também é um artista, compreende este fato?
Sobre os conceitos de beleza que vigoravam à época de Mistinguett e hoje, como você explicaria o fato de Mistinguett, atualmente, ainda ser uma referência de beleza, sobretudo, no que diz respeito às pernas? Entre os que sabem (mesmo que superficialmente) quem foi Mistinguett, existe um consenso sobre a estética, neste caso. Você concorda com isso? Já ouviu alguma opinião diferente? Para você, por que ela conseguiu ultrapassar a barreira do tempo?
    
Marcelo:É verdade, Mistinguett ultrapassa gerações, fascinando-as com sua beleza e imagem glamourosa. Ela nasceu na Île-de-France em 05 de abril de 1875. Começou, ainda jovem, a trabalhar como florista, enquanto cantava para os clientes. Iniciou sua carreira artística em 1895, apresentando-se no Cassino de Paris e também no Folies Bergère e no Moulin Rouge. Com sua beleza e sensualidade, logo conquistou muitos fãs em Paris.

    No final da década de 1900, em 1908, ela já aparecia no cinema francês. Alguns de seus filmes eram exibidos no Brasil, como "L´empreinte" (1908), que aqui recebeu o título de "A Mancha de Sangue", anunciado pelos jornais cariocas em 1909, em sessões exibidas no Theatro Lyrico do Rio de Janeiro. Esses filmes, curtas metragens, aumentavam seu prestígio e fama, fazendo com que sua imagem ficasse conhecida.

    Em 1922, o Rio de Janeiro recebeu a visita da companhia de revistas do teatro Ba-Ta-Clan de Paris, dirigida por Madame Rasimi. No segundo ato do espetáculo Paris Chic, estreado no início de agosto daquele ano, a vedete Nissia fazia uma imitação/paródia de Mistinguett, enquanto o ator Randall imitava Maurice Chevalier. O quadro cênico revivia a chegada de Mistinguett e Chevalier em Nova York.

    Para a temporada teatral de 1923, o Theatro Lyrico do Rio de Janeiro apresentava a própria Mistinguett. Contratada por Madame Rasimi, do Ba-Ta-Clan, a artista era saudada na imprensa como “a mais célebre vedetta de Paris”. Vale observar que, na época, se usava a palavra vedetta para designar as vedetes de teatro musicado. A companhia apresentava quatro revistas teatrais estreladas por Mistinguett, que se tornou a grande sensação da então Capital Federal. Houve até uma paródia feita na época, onde Mistinguett era imitada pela atriz Pepita de Abreu.

     Vale lembrar que a passagem da companhia do Ba-Ta-Clan pelo Rio de Janeiro em 1922/1923 causou, de certa forma, uma revolução na forma de se fazer o Teatro de Revista nacional (quando falamos revista, nos referimos à peça de Teatro de Revista). A companhia francesa fascinava e chocava com suas coristas muito bonitas, de corpos esculturais e que apresentavam, em algumas ocasiões, os seios nus. Fora Mistinguett que, mostrando apenas suas belíssimas pernas e carisma, arrebatava mais fãs. A estrutura das peças e todo o luxo da cenografia iriam inspirar e dar uma sacudida nas ideias de nossos empresários teatrais. Um exemplo disso é a companhia Tro-Ló-Ló, de Jardel Jércolis, que tinha no elenco a estrela brasileira Aracy Côrtes.

    Quanto a Mistinguett, seguiu sua carreira por muitos anos, sempre com muito sucesso. Vale lembrar que em 1925, a estrela francesa já contava cinquenta anos e, mesmo com a “idade avançada” para o senso comum da época, continuava fascinando seu público. 

    Sobre sua pergunta, Carmem, Mistinguett foi uma artista cuja carreira durou bastante, atravessando algumas gerações. Ao iniciar seus trabalhos como artista, na virada do século XIX para o século XX, o padrão de beleza feminino era bem diferente. Hoje, mesmo com muitas campanhas em favor de que as pessoas sejam felizes com o corpo que tiverem, ainda temos muitas sugestões dando a entender que o ideal é um corpo magro.
    No começo do século XX isso não era muito exigido. O corpo feminino podia ser mais cheinho e apreciado. Havia a “ditadura” dos espartilhos que moldavam esse corpo, dando curvas às mulheres e, muitas vezes, machucando-as.
    Não conheço fotos de Mistinguett nesse período, assim, fica difícil dizer se ela seguia esses padrões. Porém, ao ver suas fotografias na década de 1920, quando houve uma mudança de comportamento na sociedade e o “corpo magro” passou a ser o “ideal”, vemos Mistinguett de acordo com o que se “esperava” de uma artista famosa.
    Ainda na década de 1920, parte do vestiário feminino (não todo) encurtou, deixando as pernas à mostra. Se antes, um tornozelo feminino causava “frisson” entre muitos homens, agora, uma perna exposta causaria muito mais comoção. As artistas passaram a exigir suas pernas vestidas por meias e emolduradas por belos vestidos e sapatos. O conjunto fazia uma grande sensação.
    Mistinguett tinha pernas bonitas e soube explorar muito bem o fascínio que ela exercia em seu público. Creio que o resto (a grande exploração do tema ao longo de gerações) ficou a cargo da imprensa e da história. A artista cantava (tinha uma bonita voz), dançava e fez alguns filmes, o que nos leva a crer que também tinha talento para interpretar, porém, foram suas pernas que ficaram no imaginário de gerações, mesmo após sua morte.
    Eu penso que essa fama se deva aos novos valores que foram surgindo e continuaram fixados em nossa memória coletiva. Outras artistas, como Betty Grable e Marlene Dietrich também são conhecidas até hoje por suas belas pernas. Acho que o fato dessa fama durar até hoje se deve às gerações passadas que viveram o período em que isso se originou e foram passando às novas gerações, até chegar em nós que, com certeza, deveremos passar às futuras gerações. Mas, sempre é bom mudarmos essa “sina” e, principalmente, ressaltarmos o talento dessas mulheres e suas lutas, isso sim, fatores que as tornaram personalidades fascinantes.

    Ao ouvirmos a canção "Comme disait Mistinguett", interpretada por Dalida, nos vem à mente uma canção gravada em 1933 por Mistinguett, intitulada “C´est vrai!”. Creio que Dalida fez uma (justa) homenagem à grande vedete francesa. A versão de Mistinguett também brinca com casos verídicos e fantasiosos.


Carmem: - Exatamente, Marcelo! Trata-se de uma letra muito rica em referências, por isso, acho pertinente fazer uma tradução comentada e compartilhar com o público, pois este é um texto que traz um material que eu definiria como multidisciplinar, uma vez que abrange a língua francesa e suas expressões, além de detalhes estudados pelas disciplinas: História, Geografia, Música e eu arriscaria incluir também Psicologia, já que é possível analisar (ainda que à distância) traços da personalidade e da história de vida de Dalida. Como disse anteriormente, traduzi todo o texto e o dividi em partes. Na primeira estrofe, temos: 

É verdade que tenho o sotaque que soa,
Canções que galanteiam
É verdade, é verdade!
É verdade que sou italiana
De nascença, egípcia
É verdade, é verdade!

    A canção começa com uma referência ao sotaque italiano de Dalida: "C'est vrai que j'ai l'accent qui roule". "Rouler" significa "rolar", "rodar", "fluir", mas também pode ser sinônimo de "soar", "fazer-se ouvir". É interessante notar que a palavra "roule" (terceira pessoa do singular deste verbo) permite que a pronúncia da letra "r" seja bem marcada, ressaltando o sotaque da cantora. Sendo assim, creio que a palavra tenha sido escolhida por causa de sua sonoridade. É indispensável lembrar que os avós de Dalida eram imigrantes oriundos de Serrastreta, Calábria (sudoeste da Itália). Ela e seus irmãos, assim como seus pais, cresceram em uma colônia italiana em Shoubra, no Cairo (Egito). Mesmo depois de se mudar para Paris e construir uma carreira sólida na Música Francesa, Dalida nunca perdeu seu forte sotaque e esta sempre foi uma de suas características mais marcantes. É digno de nota que ela realmente tinha orgulho de suas origens e isso é lembrado na letra, quando ela canta "É verdade que sou italiana/De nascença, egípcia", ou seja, ela assume a nacionalidade dos avós, ressaltando que apenas nasceu no Egito. Entretanto, ela também se orgulhava do país em que nasceu (inclusive, gravou várias canções egípcias, manifestando seu amor pela terra que acolheu seus antepassados) e também do país que a recebeu - a França -, como veremos mais adiante. Penso que a intenção nesta parte tenha sido marcar e assumir (até mesmo ostentar, eu diria) a origem do sotaque tão observado e até criticado por muitos. Seria como se ela dissesse: "Eu tenho sotaque mesmo, porque sou italiana, mas não vou mudar, pois gosto da minha pronúncia e amo minhas origens!"
    "Des chansons qui roucoulent" é outra frase que permite a exploração da pronúncia do "r" no verbo "roucouler" conjugado na terceira pessoa do plural. Esta palavra tem como radical "rouc", uma onomatopeia que reproduz a voz dos pombos. Precisei pesquisar a respeito desta expressão e, a partir das definições dadas pelos dicionários Le Robert Micro (edição de bolso de 2006, p. 1188) e Larousse (online), concluí que a intenção dos compositores, provavelmente, tenha sido passar a ideia de um canto melodioso, terno e apaixonado... Geralmente, os pombos são associados a casais de namorados, então, creio que a melhor tradução seja "galantear".
    A seguir, temos a expressão "C'est vrai, c'est vrai" (é verdade, é verdade), que aparece durante toda a canção. Como você bem disse, Marcelo, trata-se de uma clara referência à música composta por Casimir Oberfeld e gravada por Mistinguett em 1933 (justamente o ano em que Dalida nasceu!), cujo título é exatamente este: "C'est vrai". A inspiração de Delanoë, Sevran e Debout para escrever "Comme disait Mistinguett" fica bastante clara quando recorremos à letra desta outra canção, em que Oberfeld explora detalhes da vedete que costumavam ser comentados, como "On dit que j'ai de belles gambettes", que significa "Dizem que tenho belas pernas" e "On dit que j'ai l'nez en trompette", ou seja, "Dizem que tenho nariz arrebitado" (acho interessante esta expressão, que relaciona a forma do nariz ao instrumento musical). Realmente, vemos muitas semelhanças na canção gravada por Dalida, como será comprovado durante o desenvolvimento desta tradução comentada. Prossigamos:

Mas eu prefiro Joséphine a Cleópatra
Ménilmontant aos porões do Vaticano

    Nesta parte, ela explica que, embora tenha nascido e crescido no Egito, adaptou-se muito bem na França, país que a acolheu e a tornou famosa. Dalida transferiu-se a Paris no início da carreira, logo depois que se tornou Miss Egito, em 1954. Inicialmente, atuou em alguns filmes em sua terra natal, mas logo foi incentivada a tentar crescer profissionalmente na Cidade Luz, que era o sonho da maioria dos artistas naquela época. Ali, ela conheceu o radialista e produtor Lucien Morisse, que se tornou seu marido. Com o casamento, ela adquiriu cidadania francesa. Apesar de terem passado vários anos juntos, demoraram a oficializar a união, pois Lucien era casado e postergou o divórcio. Quando finalmente tudo foi resolvido, o casamento não durou mais que alguns meses, pois Dalida se apaixonou por outro homem, de quem falarei mais adiante. De qualquer forma, Dalida já estava totalmente integrada ao novo país e já era famosa por sua arte.
   Esta ideia de acolhimento é transmitida pela letra através de elementos históricos e culturais. Vejamos as referências presentes nesta parte: Joséphine (imperatriz da França, primeira mulher de Napoleão Bonaparte), Cleópatra (rainha do Egito), Ménilmontant (bairro parisiense) e os porões do Vaticano. Neste ponto, convido você, Marcelo Bonavides, a detalhar, como historiador, tais menções:

Marcelo:
 - 
Cleópatra (69 – 30 a. C.) é uma figura histórica que ainda fascina, mais de dois mil anos após sua morte. Ao longo dos últimos séculos, de Shakespeare até os dias de hoje, quer no teatro e/ou, principalmente, no cinema, a imagem da mais famosa rainha do Egito encanta a todos que têm contato com sua história. 



Nascida em Alexandria, no ano 69 A. C., Cleópatra era filha de Ptolomeu XII e foi educada conhecendo a poesia grega, matemática e filosofia, através dos papiros da Biblioteca de Alexandria. Segundo Heródoto, historiador grego, ela era fluente em nove idioma, o que a permitia tratar diretamente com representantes ou líderes de outros países.
Assumindo o trono do Egito após a morte de seu pai, em 51 a. C., ela enfrentaria ainda seu irmão Ptolomeu XIII, para se manter no poder. Ficariam famosas suas relações amorosas com Júlio César e Marco Antônio, exercendo forte influência sobre os rumos da história romana e do próprio Egito.
Reconstrução do rosto de Cleópatra.
Fonte: https://aventurasnahistoria.uol.com.br

Cleópatra cometeria suicídio em 30 a. C., uma vez que seus amantes haviam morrido e o Egito se encontrava cercado pelas tropas romanas lideradas por Otávio, sobrinho de Júlio César. Vendo minadas suas chances de defesa, ela se deixou picar por uma serpente, em Alexandria, Egito.
O cinema imortalizou sua imagem através de atrizes como Theda Bara, Claudette Colbert, Vivien Leigh e, talvez a mais famosa, Elizabeth Taylor. Em todas as representações, Cleópatra é tida como uma mulher branca, interpretada por atrizes igualmente brancas. Fica a questão: seria essa mesma a verdadeira aparência da última soberana da dinastia dos Ptolomeus?

Carmem: - Realmente, não, Marcelo... Estudos comprovaram que a aparência de Cleópatra seria de uma mulher negra. Uma triste coincidência é que ela cometeu suicídio, assim como Dalida, porém por motivos completamente diferentes, não é? E quanto a Joséphine? Será que existe algo em comum com Dalida?

Joséphine, por François Gérard,
óleo sobre tela, c. 1807-1808,
www.britannica.com
 Marcelo:
- Marie-Josèphe-Rose Tascher de La Pagerie nasceu na Martinica em 23 de junho de 1763. Era de uma família importante da região. Na época de seu nascimento, a Martinica era disputada por Britânicos e Franceses. A França ganhou a disputa em 1763. Casou-se na França, em primeiras núpcias, em 13 de dezembro de 1779, com Alexandre de Beauharnais, que aprimorou sua educação. Tiveram dois filhos, mas em 1783 se separaram fisicamente. Ela foi para um convento com o filho mais velho, acusada de adultério. Inocentada, ficou livre para morar onde quisesse.
    Joséphine retornou à Martinica, indo depois a Paris, onde tudo havia mudado com a Revolução Francesa. Ainda era casada oficialmente com Alexandre. Ela imergiu em uma vida de festas e bailes, porém, em 1794, Alexandre foi preso e, pouco depois, Joséphine também ia para a prisão. Ficou presa três meses e meio. Saiu do cárcere após o final do período do Terror. Com isso, ela ficou na moda, pois todos queriam conhecer uma vítima da prisão.
    Viúva (Alexandre havia sido executado), Joséphine conheceu, em 1795, através de Paul Barras, o jovem general Napoleão Bonaparte, que logo se apaixonou por ela.
    Em 09 de março de 1796, Joséphine e Napoleão se casaram. Com a coroação de Napoleão como Imperador francês, em 02 de dezembro de 1804, Joséphine passava a ser a Imperatriz dos franceses. Não foi um casamento feliz, havendo suspeitas de adultério de ambas as partes. Joséphine tinha dois filhos do primeiro casamento que foram adotados por Napoleão, que muito os estimava. Após 13 anos de casados, em 14 de dezembro de 1809, Joséphine e Napoleão se separaram. Ela manteve o título de Imperatriz, mantendo propriedades e uma fortuna por pensão. Maria Luísa da Áustria casou-se com Napoleão meses depois. Ela era irmã de nossa Imperatriz, D. Leopoldina, primeira esposa de D. Pedro I.
    Em 14 de maio de 1814 Joséphine se resfriou, falecendo em 29 de maio de 1814, quase um mês antes de completar 51 anos de idade, provavelmente de pneumonia. Cerca de 20 mil pessoas foram ver o corpo da Imperatriz, de quem gostavam.
    Creio que a semelhança mais marcante entre Dalida e Joséphine, infelizmente, esteja nos amores infelizes. Ambas não foram completamente felizes em seus relacionamentos amorosos. As causas, com certeza, foram diferentes, mas, creio que elas realmente gostariam de ter tido um amor feliz. Porém, é possível fazer outras comparações: as duas saíram de sua terra natal para ir a Paris, onde tudo acontecia em termos de cultura. Ambas se destacaram, cada qual à sua maneira, na capital francesa. Tanto Dalida como Joséphine foram, e são, referências culturais da França, mesmo tendo nascido em outra região.
    Uma curiosidade sobre Joséphine: Ela era avó de nossa segunda imperatriz, Dona Amélia de Leuchtenberg, segunda esposa de D. Pedro I. Amélia era filha de Eugenio de Beauharnais, filho de Joséphine, e de Augusta da Baviera. 

Carmem: - Quanta riqueza nestas informações, Marcelo! Dalida também possui laços com o Brasil e isso não se limita a algumas de suas canções, como "La Chanson d'Orphée" (versão de "Manhã de Carnaval", de Luiz Bonfá), "La Banda" (versão de "A Banda" de Chico Buarque de Hollanda) ou "Rio do Brasil", entre outras... A família Gigliotti tem alguns membros que residem em Santo André (SP). Enquanto seus pais permaneceram no Egito, onde a cantora nasceu, alguns primos vieram para o Brasil durante o século XX.
    Quanto à preferência por Ménilmontant, creio que justifique-se pelo fato deste bairro parisiense ser uma referência cultural quando pensamos em música francesa, já que é lá que se situa o Musée Édith Piaf, que funciona na antiga residência da grande intérprete. O bairro também possui vários estúdios artísticos e bares. Já os porões do Vaticano encerram muitos mistérios e questões históricas da Igreja Católica...   

Marcelo: - É interessante lembrar que Francisco Alves, O Rei da Voz, cantou em um programa de rádio a bela canção de Charles Trenet, Menilmontant, em versão de Haroldo Barbosa.

Carmem: - É uma belíssima interpretação, inclusive! Em 1987, foi lançado o LP "Francisco Alves Inédito: 35 anos depois", em que consta esta gravação. O leitor pode ouvi-la no site do IMMuB (Instituto Memória Musical Brasileira): https://immub.org/album/francisco-alves-inedito-35-anos-depois

    Em seguida, temos o refrão, "Comme le disait la Mistinguett,/Je suis comme le Bon Dieu m'a fait/Et c'st très bien comme ça", com mais uma referência à vedete Mistinguett:

Como dizia a Mistinguett,
Eu sou como o Bom Deus me fez
E está muito bem assim

     E a letra prossegue, com alusões pessoais a Dalida:

Dizem que é meu irmão que canta
Quando eu estou de férias
Não é verdade, não é verdade!
Dizem que por pouca coisa
Eu bato em meus músicos
É verdade, é verdade!
É verdade que eu gosto dos rapazes bonitos,
Mas no fundo eu prefiro as canções


(refrão...)


Eu, tudo que quero
É que me amem um pouco
E eu admito: Estou satisfeita
Desde que nasci, desde que cantei,
Tenho admiradores aos milhares

    Quando é dito "On dit que c'est mon frère qui chante /quand je suis en vacances", Orlando (nome artístico de Bruno Gigliotti) - o irmão caçula, diretor artístico e produtor de Dalida - é evocado. Desde a infância, ambos eram muito apegados um ao outro e isso era notado por todos. Onde quer que a artista fosse, lá estava seu fiel companheiro, orientando-a, assessorando-a e até participando de algumas rusgas fraternas de vez em quando (como ocorre com todos os irmãos). Mas o que sempre prevaleceu foi o amor entre eles, que era real e notável. Até hoje, Orlando é fiel à memória da irmã e segue trabalhando na conservação e difusão de sua arte. Mas por que disseram, alguma vez, que era ele que cantava quando Dalida estava de férias? Primeiro, por causa da união que existia entre os irmãos; segundo, porque Orlando chegou a se aventurar na carreira de cantor, chegando até a gravar alguns discos e seu timbre lembra sutilmente o da irmã. Mas, como isso não era verdade, desta vez a letra responde: "Pas vrai, pas vrai!".
    A continuação da música confirma que "por pouca coisa", Dalida batia nos músicos que a acompanhavam nas apresentações: "On dit que pour de petits riens/Je bats mes musiciens". É sabido que ela era intensa, determinada, exigente, percebia notas ou tons errados e reclamava disso durante os ensaios. 
    Sobre gostar de "rapazes bonitos", a cantora de fato teve relacionamentos com alguns homens atraentes e, em muitos casos, mais jovens que ela. Alguns deles foram o ator e artista plástico Jean Sobieski, que ela conheceu e de quem se tornou amante ainda durante o casamento com Lucien Morisse, e o ator Alain Delon, com quem Dalida teve um breve relacionamento dez anos depois de tê-lo conhecido. Este caso permaneceu em segredo por algum tempo, sendo revelado anos mais tarde. Mesmo depois de separados, sempre foi conservada uma grande amizade entre eles e até hoje o ator concede entrevistas falando sobre sua relação com a cantora. 
    Outro homem que não pode ser esquecido é o jovem Lucio, um estudante doze anos mais jovem que Dalida, fã de Luigi Tenco. A artista iniciou uma amizade com ele logo depois da morte trágica do compositor, que também foi seu namorado (já abordei este assunto na seguinte postagem: http://culturofagicamente.blogspot.com/2021/04/homenagem-ao-cantor-e-compositor-luigi.html). Os encontros amistosos dos dois resultaram em um brevíssimo caso, que culminou numa gravidez indesejada... Dalida optou por fazer um aborto, sem nada contar a Lucio, tampouco ao irmão. Discorrerei mais profundamente sobre isso em uma futura postagem. 
    Todos esses relacionamentos com rapazes belos e mais jovens não tiveram continuidade, pois Dalida decidiu colocar um fim em todos eles, por motivos diversos - mas o principal era a entrega ao trabalho, o que, inclusive, a ajudava a sobreviver em meio a tantas angústias e traumas colecionados ao longo da vida. Por isso, a letra confirma que Dalida gostava de rapazes bonitos, mas no fundo, preferia as canções... "C'est vrai"
    Como bem diz a continuação, o que ela mais desejava era ser amada e foi isso que buscou durante toda a vida. Na verdade, o que ela conseguiu conquistar foi a admiração de um público enorme, composto de milhões de fãs no mundo todo, mas este amor era dirigido à artista Dalida, e não à mulher, Yolanda. Na letra, ela se diz "satisfeita", mas creio que seja uma forma de expressar gratidão às pessoas que acompanhavam sua carreira e também, obviamente, ao carinho dos irmãos, da prima e da mãe (já falecida quando do lançamento desta canção), que sempre estiveram presentes. Não sei se poderíamos compreender como uma expressão de "conformismo", pois ela sempre buscou ser amada e sobretudo, sonhava em formar uma família, algo que nunca aconteceu. Creio que seja possível afirmar que a maior luta empreendida por Dalida foi, de fato, pelo amor.
    Prossigamos:

Falam de mim que certas noites
Eu interpreto Sarah Bernhardt
É verdade, é verdade!
Dizem que meu melhor companheiro
É Teilhard de Chardin
É verdade, é verdade!
Eu adoro os refrões intelectuais
“Paroles, paroles” e a discoteca também

Como dizia a Mistinguett,
Eu sou como o Bom Deus me fez
E está muito bem assim


Marcelo: - Carmem, vamos conhecer um pouco a vida e carreira da atriz Sarah Bernhardt? 
Sarah Bernhardt fotografada
por Nadar em 1883

    Para você ter uma ideia do quão famosa ela foi no final do século XIX e início do século XX, transcrevo uma célebre frase proferida pelo igualmente célebre escritor Mark Twain: “Existem cinco tipos de atrizes: más, medíocres, boas, grandes – e Sarah Bernhardt”.
    A grande atriz francesa nasceu em 23 de outubro de 1844, chamando-se Henriette-Rosine Bernard. Era filha de uma cortesã e de pai desconhecido. Sua mãe era uma prostituta de luxo, cuja carreira como cortesã foi bem-sucedida. Ela queria que sua filha seguisse seus passos, porém, a verdadeira vocação da jovem estava nos palcos.
    Como Sarah Bernhardt, ela conquistou seu primeiro sucesso em 1869, com a peça Le Passant. Daí em diante, sua carreira foi coroada por glórias, ficando conhecida como La Divine Sarah. A forma como Sarah Bernhardt interpretava seus papéis deixava o público hipnotizado, para depois explodir em aplausos efusivos.
    Conhecendo muito bem a vida mundana parisiense, ela foi a perfeita intérprete de Marguerite Gautier, a cortesã heroína de A Dama das Camélias, de Alexandre Dumas Filho. Em seu vasto repertório, ela interpretaria personagens masculinos, como Hamlet, de Shakespeare. Quando Hamlet foi filmado pela primeira vez para o cinema, em 1900, coube a Sarah interpretar o personagem título.
    Se no palco ela absorvia com intensidade as emoções de seus personagens, na vida real não era diferente. Sarah Bernhardt vivia de forma frenética, impregnada por fortes emoções e realizações pessoais. Entre algumas curiosidades, podemos apontar: também seguiu uma breve carreira de escultora, produzindo belas obras; tinha a mania de se deixar fotografar dentro de caixões, como se estivesse morta; possuía um pequeno zoológico particular; arrendou grandes teatros para apresentar suas peças; era envolvida com os problemas sociais de seu tempo; para citar algumas.
    Sarah Bernhardt era uma mulher bem-sucedida profissionalmente que, para o final do século XIX, era considerada “ousada”. Ousada por ter vários amantes, em uma época em que a sexualidade feminina se resumia a ter filhos dentro do casamento. Seu único filho, Maurice, foi fruto de um romance com um príncipe belga, que nunca assumiu de fato a criança. Isso não foi empecilho para que Sarah o criasse como o “príncipe” que ela julgava sê-lo.
    Ela foi uma das primeiras artistas a excursionar pelo mundo, levando sua atuação pelas Américas e outros continentes, só não se apresentando na Ásia. No Brasil, ela esteve por três vezes: em 1886, 1893 e 1905. Na primeira vez, foi vista e aplaudida pelo imperador D. Pedro II. Infelizmente, na última vez em que esteve aqui, sofreu um grave acidente em cena. Em um momento da peça Tosca, seu personagem deveria se atirar de um penhasco, porém, os colchões que deveriam amparar sua queda não estavam no local exato. Mesmo assim, profissional que era, Sarah se atirou ao chão sem proteção alguma. Ela estava com sessenta anos de idade. Esse acidente, com o fato dela não ter cuidado bem dos ferimentos ao longo dos anos seguintes, iria levar a amputação de sua perna. Isso não a impediu de atuar e recitar, inclusive apresentando-se para soldados na Primeira Guerra Mundial.
    Sarah Bernhardt faleceu em 23 de março de 1923, também em Paris, aos 79 anos de idade. Podemos dizer que ela foi uma das primeiras artistas a virar celebridade mundial. Vejo semelhança entre ela e Dalida no fascínio que as duas exerciam sobre seus fãs, ao interpretarem, cada uma, a sua arte, seja no teatro (caso de Sarah Bernhardt) ou na música/dança/performance (caso de Dalida).

Carmem: - Que riqueza de detalhes, Marcelo! Adorei suas observações sobre Sarah Bernhardt! Realmente, ambas exerceram um grande fascínio sobre os fãs e até hoje são lembradas como referências em suas respectivas artes. É interessante esta parte da letra: "Falam de mim que certas noites/Eu interpreto Sarah Bernhardt". Creio que o significado esteja na dramaticidade das interpretações de ambas. A citação de Mark Twain resume bem essa característica de Sarah, que estava acima da capacidade das atrizes de sua época - e eu diria que de hoje também.
Teilhard de Chardin
Fonte: https://www.transcend.org/
    Quanto a Teilhard de Chardin ter sido o "melhor companheiro" de Dalida, "é verdade, é verdade" (risos)! O filósofo francês contemporâneo (1881 - 1955) ficou conhecido por unir Ciência e Espiritualidade em sua obra, caracterizada pelo otimismo embasado no progresso científico como participação humana na criação e evolução do mundo. No processo de pesquisa, o homem contribui na criação divina, pois conhece e supera sua condição presente. Além disso, segundo o pensador francês, as crises na história da humanidade são fruto do contato cada vez mais próximo dos homens, o que causa tensões, mas ao mesmo tempo, a esperança na superação e na instalação de relações de melhor qualidade. Teilhard de Chardin acreditava na evolução da humanidade, pensando o desenvolvimento como algo inerente ao mundo - mesmo a substância mineral, como o ferro, sendo menos frágil que a matéria orgânica, possui duração relativa, já que o metal enferruja. No caso da vida, a evolução vai além do indivíduo, pois é transmitida à comunidade vivente, que recebeu influências deste ser. 
A quem quiser saber mais sobre Teilhard de Chardin, recomendo este artigo de François Euvé traduzido por Luisa Rabolini: http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/571833-a-visao-de-pierre-teilhard-de-chardin-um-mundo-em-mudanca
    Dalida buscou na obra de Teilhard de Chardin o conforto que ela não encontrou em sua vida pessoal. Na verdade, a cantora lia muito, tendo se dedicado também a outros autores, como Sigmund Freud e Carl Jung, que a ajudaram a compreender muitas de suas angústias. Dalida, na verdade, era uma intelectual, por isso, gostava tanto das letras mais "conceituais". Quanto a "Paroles, paroles", trata-se de uma famosa canção gravada originalmente em italiano por Mina e Alberto Lupo, que teve enorme sucesso na versão francesa, cantada por Dalida e Alain Delon (que teve um breve relacionamento com a intérprete durante a década de 60). No Brasil, a versão intitulada "Palavras, palavras" foi gravada por Maysa e Raul Cortez.
    Sobre a discoteca, basta dizer que Dalida foi a precursora deste gênero na França para compreender a importância da intérprete e o porquê desta menção na letra.
    Continuemos:    

Há quase vinte anos dizem
Que eu não passarei a primavera
Podem dizer o que quiserem
Eu não seria Dalida se eu não fosse assim

É verdade que você tem o sotaque que soa
Canções que galanteiam
É verdade, é verdade!
É verdade que você é italiana
De nascença, egípcia
É verdade, é verdade!
Dizem que é seu irmão que canta
Quando você está de férias
Não é verdade, não é verdade!

Podem dizer o que quiserem
Eu não seria Dalida se eu não fosse assim
Podem dizer o que quiserem
Eu não seria Dalida se eu não fosse assim

    Em 1967, logo depois da tragédia de San Remo, Dalida tentou suicídio, pois não via mais razões para continuar vivendo e estava inconformada com a morte de Luigi Tenco, seu então namorado. Como já disse anteriormente, mais detalhes sobre o ocorrido podem ser lidos neste artigo escrito por mim: http://culturofagicamente.blogspot.com/2021/04/homenagem-ao-cantor-e-compositor-luigi.html. Desde então, muito se falou que Dalida não sobreviveria por muito tempo... Infelizmente, esta premonição de cumpriu, já que a intérprete cometeu suicídio em 1987, em seu quarto, tomando uma alta dose de barbitúricos com um copo de whisky.

Marcelo: - Carmem, é muito bom poder ir analisando esses versos. Nós aprendemos muito com isso.         Concordo com você sobre o fascínio que ambas exerciam e exercem sobre os fãs e a dramaticidade que ambas apresentavam em seus trabalhos, que até hoje impressiona.
    Em relação a Teilhard de Chardin, pelo que entendi, todo o processo evolutivo da humanidade, com suas tensões, está baseado no conhecimento e na pesquisa que o homem vai praticando, inclusive na busca de si mesmo. Dalida, ao que parece, buscava o autoconhecimento e se aprofundar bastante na cultura mundial, o que torna sua carreira muito rica, mas, ao mesmo tempo, pode ter criado (aliado aos dramas de sua vida) muitos períodos de conflitos e angústias.
    Dalida teve uma extensa carreira, porém, era uma artista do presente. Não é de se admirar que tenha inaugurado a discoteca na França. Se ficarmos “presos” à sua imagem e repertório do início de carreira, acharemos estranha essa imersão em novos estilos. Agora, se olharmos Dalida como a artista atemporal que ela é (sim, ainda é), entenderemos e apreciaremos mais ainda sua trajetória.
    Sarah Bernhardt tinha uma espécie de lema, “Quand même”, que significaria, mais ou menos, “apesar de tudo”. Apesar de tudo, essas duas artistas foram e continuam sendo gigantes.

Carmem: - Marcelo, suas considerações são excelentes! Adorei nossa conversa e creio que nós conseguimos contemplar o tema, oferecendo não somente uma simples tradução, mas comentários riquíssimos acerca dos nomes mencionados na letra. É gratificante poder desenvolver um diálogo tão profundo, ponderando sobre questões estéticas - e também éticas - que permeiam cada detalhe. De uma coisa tenho certeza: Nunca mais ouviremos "Comme disait Mistinguett" da mesma forma! Os 3:12 de duração da música contêm muito mais que melodia, ritmo e a sensualidade de Dalida; eles nos oferecem, principalmente, História e Arte. E posso afirmar, sem receio de errar: "C'est vrai!".


Carmem Toledo

Marcelo Bonavides de Castro



    





Conheçam a página Arquivo Marcelo Bonavides: http://marcelobonavides.com

Acompanhem minhas performances em homenagem à cantora Dalida: Dalida... À ma manière

Querem saber mais sobre a vida e a carreira da artista?
Acompanhem as outras postagens da série: Tributo a Dalida.

Leiam também a história da tragédia do Festival de San Remo em 1967, que envolveu diretamente a diva: Homenagem ao cantor e compositor Luigi Tenco.



Algumas fontes recomendadas a quem deseja saber mais sobre Dalida:
Site oficial da cantora: https://dalida.com/
Blog brasileiro dedicado a Dalida (por Alexandre Korrea): http://dalidabrasil.blogspot.com/


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